No livro "Paixão pelo Saber - Uma breve História da Filosofia, os filósofos norte-americanos Robert C. Solomon e Kathleen M. Higgins, ambos professores de filosofia na Universidade do Texas, apresentam de modo bastante sintético alguns pontos básicos sobre as origens da filosofia. Vale a pena conhecer o que os dois escreveram:
Se voltamos os olhos para o passado e contemplamos a totalidade da existência humana, o surgimento da filosofia e de filósofos parece um fenômeno realmente bastante estranho, uma secreção etérea que não pode ser explicada em termos de fisiologia ou de necessidade física. Talvez essa atividade notoriamente “inútil” fosse um subproduto de nossos cérebros avantajados, o resultado de pensamentos que ultrapassam as rotinas cotidianas e olham para além de si. A filosofia representou, sem dúvida, uma complicação a mais em nosso uso crescente da linguagem, à medida que um vocabulário rico de conceitos abstratos e subjetivos substituiu nossos grunhidos e rosnados utilitários e expressivos. Mas ideias filosóficas, de alguma forma – ideias sobre a natureza, suas forças e questões, sobre a morada da alma na vida após a morte, por exemplo –, são praticamente universais e podemos encontrar sua origens há dezenas de milhares de anos, na pré-história. Os homens de Neandertal tinham rituais de sepultamento e práticas que sugerem uma crença na continuidade da vida após a morte. Ideias sobre a existência e espíritos, deuses e deusas, e seres ativos e forças além do alcance da percepção humana direta têm também uma longa história. A curiosidade acerca da natureza, não apenas como necessidade prática mas como deslumbramento genuíno, remonta provavelmente a Cro-Magnon. Várias concepções de identidade coletiva e justiça – não só costumes e hábitos de vida em comum, mas mitos e racionalizações do território, do poder e da comunidade – antecedem sem dúvida a “civilização” por muitos séculos.
Em algum momento entre os séculos 6 e 7 antes da era cristã, no entanto, ideias filosóficas plenamente articuladas e sistemas de pensamento começaram a aparecer em vários lugares esparsos do globo. Em torno do Mediterrâneo e no Oriente Médio, na Índia e na China, surgiram filósofos, grandes filósofos cujas ideias iriam estabelecer os termos da filosofia em suas várias tradições por milênios no futuro. No Oriente Médio, os antigos hebreus desenvolveram sua concepção de um Deus uno e de si mesmos como o “povo escolhido”. Na Grécia, filósofos elaboraram as primeiras teorias científicas da natureza. Na China, os taoístas desenvolveram uma visão muito diferente da natureza, enquanto Confúcio criava uma poderosa concepção da sociedade e do indivíduo virtuoso que rege o pensamento chinês até hoje. Na India antiga, os primeiros teóricos hindus (os vedistas) comentavam a origem da natureza e do mundo, tal como descrita nos Vedas, e especulavam sobre ela, criando um rico panteão de deuses, deusas e ideias grandiosas.
Além de referir-se a épocas, Solomon e Higgins deixam claro que tipo de questões e ideias formam o que chamamos de pensamento filosófico. De acordo com alguns estudiosos, a filosofia inclui todo tipo de especulação sobre a vida e a morte que o ser humano tenha levantado, incluindo aí as reflexões de caráter religioso.
Para outros filósofos, porém, o pensamento filosófico surge na Grécia, por volta do século VI a.C., quando surgem as primeiras tentativas de explicação natural (e não sobrenatural) para os fenômenos da natureza. De fato, isso foi uma coisa nova e um dos momentos essenciais ao desenvolvimento humano, que deram um enorme impulso ao nosso conhecimento.
Os primeiros filósofos gregos
Os primeiros filósofos gregos tentaram entender o mundo com o uso da razão, sem recorrer à religião, à revelação, à autoridade ou à tradição. Além disso, também eram professores que ensinavam seus discípulos a usar a razão e a pensar por si mesmos. Eles os encorajavam a discutir, argumentar, debater e propor ideias próprias.
Tendo vivido entre o século 6 a.C e princípios do século 5 a.C., esses filósofos mais antigos, dos quais poucos conhecimentos foram conservados através dos tempos, são também chamados de
pré-socráticos, por que antecederam
Sócrates, o primeiro filósofo cujo método de pensar, bastante sistemático, foi efetivamente preservado para a posteridade.
Não se pode, porém, deixar de examinar, ainda que brevemente, o pensamento dos pré-socráticos. Ainda que só nos restem fragmentos de suas ideias, elas são surpreendentes. E não só por constituírem uma grande novidade para a época em que elas foram formuladas, mas também porque muitas delas ou conservam grande atualidade ou encontraram ressonância em filósofos de milênios posteriores, inclusive nossos contemporâneos.
Tales e Anaximandro
Para começar, pode-se mencionar
Tales, da cidade de Mileto, na Ásia Menor (atual Turquia). As datas de seu nascimento e morte são ignoradas, mas sabe-se que ele atuou na década de 580 a.C. Tales de Mileto se perguntou: "De que é feito o mundo?". Chegou à conclusão de que ele era feito de um único elemento: a água. Afinal, todas as coisas precisam de água para viver, é a chuva que faz as plantas brotarem da terra e toda porção de terra termina na água.
Um discípulo de Tales, nascido na mesma cidade, Anaximandro (610 a.C.-546 a.C) desenvolveu outro raciocínio. Se a Terra fosse sustentada pela água, esta, por sua vez, deveria ser sustentada por outra coisa e assim sucessivamente, até o infinito. Disso, Anaximandro concluiu que a Terra não era sustentada por nada, mas um objeto sólido que flutuava no espaço e se mantinha em sua posição graças a sua equidistância em relação a tudo mais.
Heráclito e Pitágoras
Na mesma época, outro filósofo de outra cidade grega, Heráclito de Éfeso, desenvolveu dois raciocínios extremamente originais. Primeiro, a da unidade entre os opostos. Heráclito percebeu que o caminho para subir uma montanha é o mesmo para descer. Ou seja, trata-se de um mesmo caminho, embora ela conduza a direções opostas. A partir daí, o filósofo concluiu que a realidade surge justamente da contradição.
Por isso, a realidade é instável e está em constante movimento. "Tudo flui", dizia Heráclito. Com isso, queria dizer que nada é permanente. Ele comparava as coisas a uma chama que parece um objeto, mas é muito mais um processo. Para ele, portanto, a mudança é a lei da vida e do universo.
Pouco antes de Heráclito, outro filósofo também se destacava na cidade grega de Samos: Pitágoras. Supõe-se que ele tenha inventado o termo "filosofia", pois se definia como um amigo (filo) do saber (sofia). Com certeza, sabe-se que ele relacionou a filosofia à matemática, acreditando que a linguagem matemática poderia expressar com maior precisão as estruturas do universo.
Você tem dúvidas de que ele estava certo? Claro que não. A relação matemática/filosofia vingou, e chegou até física e aos filósofos contemporâneos como
Bertrand Russell e Alfred Whitehead. Antes de seguir adiante, não se pode esquecer que Pitágoras formulou o famosíssimo
teorema que leva seu nome: num triângulo retângulo, a hiponenusa ao quadrado é igual à soma do quadrado dos catetos. Aliás, Pitágoras traçou também a relação, até então inexistente no mundo grego, entre geometria e aritmética.
Xenófanes e Parmênides
Na última metade do século 6 a.C., pontificou outro grande filósofo:
Xenófanes de Colofão. Para ele, o conhecimento é uma criação humana. Nós jamais conhecemos a verdade, mas vamos nos aproximando dela, à medida que aprendemos mais e vamos mudando nossas ideias, à luz do que aprendemos.
Nesse sentido, conhecer é fazer conjeturas que devem ser substituídas, quando se revelarem ultrapssadas. Essa ideia foi a chave que permitiu ao filósofo contemporâneo
Karl Popper estabelecer os limites da ciência.
Na primeira metade do século 5 a.C., Parmênides, um discípulo de Xenófanes, desenvolveu uma reflexão contrária à de Heráclito. Parmênides considerou que é uma contradição afirmar que "nada existe". Para ele, tudo sempre existiu. O mundo, portanto, não tem princípio, nem foi criado: ele é eterno e imperecível. "Tudo é um", dizia Parmênides, e o que parece mudança ocorre, na verdade, no interior de um sistema fechado e imutável.
Empédocles e Demócrito
Sem discordar de Parmênides, Empédocles sustentava que tudo era composto de quatro elementos essenciais e perenes: terra, água, ar e fogo. Essa ideia influenciou o pensamento ocidental até o renascimento e a ideia dos quatro elementos é bastante conhecida ainda hoje, mesmo por quem não conhece história da filosofia.
Para terminar esse breve panorama do pensamento pré-socrático, é importante mencionar os filósofos Leucipo e Demócrito, chamados de "atomistas". Foram eles que teorizaram que se fôssemos reduzindo, por meio de cortes, qualquer coisa, chegaríamos a um momento em que a coisa estaria tão diminuta que não poderia ser cortada. Ou seja, chegaríamos ao
átomo ("a" = prefixo de negação; "tomo" = cortar).
Segundo ambos, tudo que existe são átomos e espaço. As coisas são diferentes entre si por que são diferentes combinações de átomos no espaço. Mesmo que hoje saibamos que o átomo pode ser subdividido em partículas menores do que ele mesmo, não há como negar o avanço da concepção de Leucipo e Demócrito, não é mesmo?
Enfim, os pré-socráticos refletiram sobre a natureza do mundo procurando explicá-lo a partir de sua própria natureza e, se muito do que pensarem pode ser considerado um absurdo hoje em dia, seu pensamento inegavelmente foi o ponto de partida para o entendimento racional do mundo.
Sugestão de leituras
"O mundo de Sofia - romance da história da filosofia", de Jostein Gaarder (Companhia das Letras) é uma história da filosofia escrita especialmente para adolescentes. Quem quiser se aprofundar pelo tema, lendo um livro breve e muito atualizado, pode ler "Paixão pelo Saber - uma Breve História da Filosofia", de Robert C. Solomon e Kathleen M. Higgins (Civilização Brasileira), cujo trecho incial foi citado aqui.