Este trabalho é uma breve abordagem sobre o ideal utópico no pensamento filosófico, principalmente na obra A cidade do Sol, de Tommaso Campanella (1568 - 1639). Aborda sua vida, marcada pela perseguição religiosa e pelo encarceramento político e também sua obra, que vagou entre filosofia política, astrologia e teologia, observada no momento histórico no qual viveu. Quanto ao pensamento utópico, o trabalho retoma as ideias de Platão, More, Rousseau, Marx e Engels e, evidentemente, do próprio Campanella. Esse, assim como os dois primeiros, tem seu pensamento girando em torno da utopia, seja ela a Callipolis de Platão, a Utopia de More, ou a sua Cidade do Sol, como a idealização de um estado perfeito, no qual em harmonia todos tivessem iguais condições de vida. Rousseau idealiza o homem em seu estado natural e Marx e Engels tentam romper com o caráter utópico do socialismo, atribuindo-lhe valor científico. Propriamente em Campanella, explora a organização social na Cidade do Sol, seu governo, construção, propriedade comum e forma de trabalho e educação, além da qualidade de vida da cidade que em tudo se supõe perfeita. Chama a atenção ainda para o lugar das diversas formas de utopias na atualidade.
Palavras-chave: Campanella. Utopia. A cidade do Sol.
Introdução
O pensamento utópico marca a história da humanidade. Está presente no nível da vida das pessoas, na sua relação com a sociedade e com as circunstâncias históricas e temporais, principalmente na idealização do futuro, e não apenas na literatura chamada utópica, como é o típico caso de A República, de Platão, da Utopia, de Tomas More, de A cidade do Sol, de Tommaso Campanella, A nova Atlântida, de Francis Bacon e várias outras, inclusive não filosóficas.
O ideal de utopia presente nas obras citadas é unânime, principalmente quanto à idealização de sociedades supostamente perfeitas, nas quais os indivíduos tudo possuíssem em comum e, em comunidade, partilhassem dos bens conquistados. A perfeição da vida nessas sociedades imaginárias supõe a impossibilidade de sua efetivação, principalmente pela dificuldade de atingi-la, sem deixar de lançar pistas para tanto, descrevendo com minúcias os caminhos pelos quais a sociedade assim se torna.
A Cidade do Sol, descrita na obra de frei dominicano Tommaso Campanella, que aqui se toma como base, apresenta uma dessas cidades perfeitas. Nela todos têm iguais direitos e deveres e estão, de modo metafísico, sob a proteção de um rei sacerdote assessorado por um conjunto de príncipes e magistrados que garantem a harmonia em todos os sentidos aos habitantes dessa cidade.
Trata-se, assim, com a ajuda de pensadores e comentadores, de uma breve revisão histórica, acerca de Campanella e seu tempo e, a partir de sua obra A cidade do Sol, de uma observação e do ideal de utopia, focando principalmente a questão do bem comum. Para se chegar ao pensamento de Campanella, procura antes relembrar esse mesmo ideal em Platão, com sua Callipolis, e em More, mencionando ainda pensamentos posteriores, por critério de contextualização, como a utopia em Rousseau e o socialismo-comunista, percebendo nele a passagem do socialismo utópico ao científico; além disso, pontua elementos segundo os quais o ideal utópico está morto e sepultado, mas apresenta também sua eterna vida adaptada ao meio no qual se encontra.
A reflexão que aqui se faz está no sentido de perceber como o ideal utópico está presente no pensamento humano, além dos diversos modos como ele se dá, sabendo-o não apenas político, como se apresentou tradicionalmente, mas também econômico, ecológico, afetivo e religioso.
Pretende ainda, de algum modo, levantar a existência da utopia, sua solidez, enquanto pensamento, e sua perfeição, enquanto sociedades organizadas. Contudo, não evidencia certezas a seu respeito, somente elucida a necessidade de, pensando juntos, indivíduos e comunidades afirmarem-se na luta pelo mundo mais justo, igualitário e fraterno, que é tanto utópico, quanto possível.
O IDEAL UTÓPICO A PARTIR DA OBRA A CIDADE DO SOL DE TOMMASO CAMPANELLA
Visão geral do filósofo e seu tempo
Segundo Pessanha (1978) Campanella é nascido na cidade italiana de Stilo, na Calábria, no dia 5 de setembro de 1568, recebendo no batismo o nome de Giovan Domenico, tendo mudado-o para Tommaso, em homenagem a São Tomás de Aquino, ao ingressar na ordem dos dominicanos em 1583, aos quatorze anos de idade.
Campanella segue a tradição do pensamento renascentista. Embora no convento tenha estudado a filosofia aristotélica, como afirma Pessanha (1978), o estudo da filosofia campanelliana faz notável o que Reale e Antisere (2007) assinalam quanto à semelhança de Campanella a Giordano Bruno (1548-1600), principalmente quanto à prática e estudo da magia e da astrologia, assim como sua insistente convicção daquilo que havia de cumprir, além da reforma universal, que ambos imaginaram.
Ainda segundo Reale e Antisere (2007), as doutrinas naturalistas de Campanella trazem ainda profundas marcas da filosofia de Bernardino Telésio (1509-1588), que promovia um encontro direto com a natureza, única fonte de conhecimento, e, portanto, ruptura com a cultura livresca. Huismam (2004) afirma que o naturalismo telesiano satisfazia o desejo de Campanella de alcançar um saber direto, não mediado pela autoridade.
A obra Filosofia demonstrada pelos sentidos, que Campanella publicara em 1591, por trazer, segundo Huismam (2004), defesa às doutrinas telesianas, custou-lhe o primeiro processo por heresia, em Nápoles. Pessanha (1978) narra a perseguição da inquisição espanhola às ideias de Campanella, segundo o qual, passa alguns meses preso sob suspeita de obter conhecimentos de fontes diabólicas. Liberto, Campanella dirige-se, contrário às orientações de sua ordem que o obrigara a voltar à Calábria, à Pádua, onde conhece Galileu e é de novo acusado de heresia e absolvido.
Historicamente, segundo Amaral (2008), entre 1502 e 1504, França e Espanha guerrearam e o exército espanhol toma o reino de Nápoles e a Sicília, ao sul da Itália, enquanto a França fica com Milão, ao norte. Neste contexto de uma Itália desunificada está a Calábria, de Campanella, ainda subjugada ao poder espanhol e, se não bastasse a falta de autonomia política, as condições de vida manifestavam-se na profunda miséria da população.
De acordo com Pessanha (1978), tal situação sensibilizara Campanella, fazendo dele um líder intelectual de um complô político estourado em 1599. Para Huismam (2004), Campanella concebia essa conjuração como um momento de revolta para proclamar a partilha das terras feudais e também para libertar sua terra dos espanhóis e instaurar uma república teocrática cujo sacerdote e rei seria ele. A traição de alguns reacionários e a descoberta pelo governo espanhol causou o fracasso da revolução que custou a Campanella a pena de morte, da qual se livrou simulando loucura, mas permanecendo preso até 1626.
Reale e Antisere (2007) dividem a vida de Campanella em quatro fases. A primeira, já descrita, empreende da sua juventude ao fracasso da revolução contra a Espanha. Nesse período escreve Sobre a monarquia dos cristãos (1593), Sobre a hierarquia eclesiástica (1593) e Discursos a príncipes da Itália (1595). A segunda fase compreende seus 27 anos de encarceramento. Durante este tempo de início penoso, mas de comodidade adquirida aos poucos, muda seu pensamento e considera a Espanha a potência capaz de mudar o mundo. Escreve A cidade do Sol (1602), Dos sentidos das coisas e das magias (1604), Teologia (1613 e reescrita em 1624) e Apologia pró-Galileu (1616 e reescrita em 1622).
As fases terceira e quarta, descritas por Reale e Antisere (2007), referem-se à estada de Campanella em Roma e na França. Numa, após ter sido libertado pelo rei da Espanha, foi novamente retido, mas estando sob a proteção do papa Urbano VIII, tem como locus carceris o palácio do Santo Ofício em Roma. Criando afeição pela França é acusado injustamente de co-responsabilidade numa nova revolução contra a Espanha instaurada por um ex-discípulo seu, o que o obriga a fugir para a França. Lá vive a quarta fase, na qual goza de grandes homenagens, inclusive dos favores do cardeal Richilieu.
A morte de Campanella acontece em Paris, em 1639. Segundo Huismam (2004), no convento de Saint Honore e suas cinzas foram dispersas durante os distúrbios da revolução francesa.
É importante ressaltar o comentário de Reale e Antisere (2007) que atribui o amadurecimento fora de época das ideias de Campanella ao fato de ter ficado encarcerado pelos melhores anos de sua vida. Para eles, quando Campanella chegou a gozar de respaldo intelectual na França, já era a vez das ideias de Descartes, que nem sequer quis conhecê-lo.
A utopia na tradição filosófica
Teixeira Coelho (1989) considera que desde a antiga Torre de Babel até os recentes movimentos Hippies, o homem tem buscado o impossível, o utópico. Movido de uma força, que o autor citado convenciona chamar de “esperança”, a humanidade marcha rumo àquilo que ainda não é, que não existe, mas que acredita poder, regado a sonhos e lutas, tornar real.
O Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa define utopia como “descrição imaginativa de uma sociedade ideal” (HOUAISS, 2008, p.757). Oliveira de Paula (2008, p. 17), no entanto, lembra o sentido comum de utopia: “algo que não seja realizável, longe da realidade experienciável, irreal”.
Ambas as citações acima condizem com o conceito literal de Mora (2001, p. 2961): “utópico significa o que não está em nenhum lugar” e reafirma: “chama-se utópico todo o ideal – especialmente todo o ideal de sociedade humana – que se supõe maximamente desejável, mas que muitas vezes se considera inalcançável”.
Embora haja um consenso entre os filósofos e comentadores acerca da origem do termo utopia, atribuído a Thomas More a partir de sua obra assim chamada, na tradição filosófica o primeiro pensador a escrever uma utopia foi Platão com sua obra A república, na qual, segundo Reale e Antisere (2007), somente na condição de o político se tornar um filósofo é que se torna possível construir um Estado verdadeiramente fundado sobre o valor supremo da justiça e do bem.
De acordo com Mondin (2007), para Platão o estado ideal é o que quer viver no bem, na justiça e na verdade. Para isso, a Callipolis, ou seja, a melhor cidade idealizada por Platão, organiza-se em três classes (trabalhadores, guerreiros e magistrados), devidamente formadas para o exercício de sua atividades, que se colocam em função da comunidade, realizando aquilo que é próprio a cada uma. Reale e Antisere (2007) consideram que, em Platão, tal Estado reproduz em proporções maiores a alma humana. Nele, cada cidadão, independente da classe a que pertence, tem em si as faculdades próprias das demais classes.
Para Oliveira de Paula (2008), na Callipolis os interesses pessoais se casam com os da totalidade social. Nela, as pessoas por serem diferentes ocupam funções diferentes, assim estabelece-se uma forma de comunismo social, no qual sociedade e família são eliminados, evitando a cobiça e os interesses afetivos.
No entanto o próprio Platão através do diálogo entre Glauco e Sócrates estabelecido no livro IX de A república parece reconhecer o caráter utópico de sua obra:
Glauco – Você se refere àquela república de que descrevemos a fundação, mas que foi fundada somente em nossas palavras porque, eu acho, que no mundo não se encontre em parte alguma. Sócrates – Mas talvez exista seu modelo no céu para quem estiver disposto a vê-lo e apoiar-se ele próprio nesse Estado. De qualquer modo não importa se ele existe ou se foi destinado a existir. (PLATÃO, 2007, p. 339)
A Utopia de Thomas More, publicada em 1516, também é, segundo Teixeira Coelho (1989), um livro no qual se relata a vida melhor levada pelos habitantes de uma ilha situada em algum lugar. Trata-se de uma ilha dividida em 54 cidades, todas de igual estrutura. Mondin (2007) a caracteriza como essencialmente agrícola e, diferentemente de A república, de base familiar. Nela, todos trabalham seis horas por dia para que todas as necessidades econômicas dos habitantes sejam igualmente satisfeitas. A vida do indivíduo deve se dar preferencialmente no meio comunitário, buscando equilibrar prazeres do espírito e saúde do corpo. Todos devem acreditar nalguma divindade superior, sendo proibido apenas o ateísmo. Reale e Antisere (2007) lembram ainda que na Utopia todos são iguais entre si, não havendo diferenças de renda e status.
Comparando sua república utópica às repúblicas reais, More escreve:
Todas as outras falam do interesse público e na verdade só cuidam dos interesses privados. Nessa república nada é privado e o que conta é o bem público. Todos sabem que, em outros lugares, cada um deve cuidar de si próprio, caso contrário, por mais próspero que seja o Estado, arrisca-se a morrer de fome; portanto, é forçado a ter em vista sobretudo os seus interesses e não aqueles do povo, ou seja, dos outros. Em Utopia, ao contrário, onde todo pertence a todos, qualquer cidadão está seguro de que não lhe faltará nada, desde que os celeiros públicos estejam repletos (MORE, p. 108).
Segundo Oliveira de Paula (2008), a obra de More é uma crítica social, política e religiosa à sua época. Isso se evidencia na primeira parte da obra, quando, segundo Huismam (2004), faz um papel semelhante ao do sociólogo, analisando e criticando os sistemas concretos então existentes. O diálogo figurativo com Rafael Hitlodeu, descrito nessa parte primeira, permite a More colocar em palavras de seu interlocutor uma crítica à Inglaterra de seu tempo, da qual era chanceler.
Reale e Antisere (2007) citam L. Firpo, para este a obra de More foi uma das que mais influenciou o curso da história, pois impulsionou o homem revoltado com o sistema a lutar e ressuscitou, conforme diz Huismam (2004), a filosofia política, mostrando, ao contrário de Maquiavel, que o pensamento político é sempre pensamento da utopia, pois é pensamento do possível e não do necessário.
Na sequência, a obra A cidade do Sol, de Tommaso Campanella, encaixa-se nesse estilo lítero-filosófico. Escrita em 1602, traz as aspirações de uma sociedade ideal, a partir dos anseios de um monge dominicano revolto com a situação política em sua região. Sobre a utopia nesta obra, se falará mais detalhadamente um pouco mais adiante.
Posteriormente, no século XVIII, Rousseau destaca-se no ideal utópico, como lembra Oliveira de Paula (2008), a partir do ideário de bondade e piedade do homem em seu estado de natureza, como ele mesmo menciona, referindo-se aos “naturais”, ou seja, àqueles que Colombo encontrara no paraíso terrestre, a América.
A afirmação de Rousseau: “O homem nasceu livre e em toda parte se encontra sob ferros” (ROUSSEAU, 2008, p. 16), é base para o desenvolvimento social que lhe segue, com a idealização, por parte das escolas reformistas, de modelos educacionais, sociais, políticos, econômicos e culturais em vista de uma transformação que culmina na formação do ser autônomo, libertário, o que, embora realizável, assume caráter utópico por sugerir um modelo ideal.
Ainda segundo Oliveira de Paula (2008), a utopia de Rousseau influenciou o pensamento de Karl Marx. No entanto, apesar de Marx e Engels comungarem do socialismo-comunista, em O manifesto do partido comunista condenam claramente a utopia presente no socialismo pensado, segundo Abbagnano (1998), por Saint Simon, Fourier e Proudhon. Neste socialismo a utopia engendra-se, como afirma Mannhein:
Também a experiência e a mentalidade socialista e comunista, no que diz respeito as suas origens, podem ser tratadas como uma unidade (...) Socialismo e utopia liberal são a mesma coisa no sentido de que ambos acreditam que o reino da liberdade e da igualdade só será feito em um futuro remoto. Mas o socialismo coloca o futuro, caracteristicamente, em um ponto mais determinado, por exemplo, no período do colapso da cultura capitalista. Esta ideia de solidariedade do socialismo com a ideia liberal, em sua orientação tinha uma meta situada no futuro, e se explica pelo fato de que ambos se recusam a aceitar direta e imediatamente, como faz a ordem existente. (MANNHEIM, 1993, p. 209, tradução nossa).
As estratégias marxistas, de acordo com Oliveira Paula (2008), expressam a vontade de apresentar uma sociedade mais justa e igualitária. No entanto, Teixeira Coelho (1989) reconhece que Marx, apesar de ter resgatado dos projetos utópicos os pontos convenientes ao seu próprio programa, concebia também a inviabilidade de se criar uma sociedade perfeita por decreto, seja de um pensador, seja do povo. A citação de Mannhein (1993) paraleliza socialismo e utopia, principalmente no que se refere à espera pela transformação da sociedade. Somente a partir do momento em que o caráter subjetivo do problema social cede lugar àquilo que se apresenta como ciência do social, ou seja, o materialismo histórico, é que o pensamento de Marx e Engels se distancia verdadeiramente da utopia, enquanto algo impossível e se busca concretizar tais ideais, é o lugar ao socialismo científico. Neste, como já citado em Mannhein (1993, p. 47 tradução nossa), “no período do colapso da cultura capitalista”, se prevê como certa a transformação do capitalismo em comunismo. Segundo Abbagnano (1998), esse caráter poderia sugerir uma utopia, não o fazendo por não prever formas de vivência das sociedades futuras.
Segundo Teixeira Coelho (1989), depois da desilusão socialista-comunista, abre-se espaço para a distopia, configurada na obra 1984, de George Orwell, e em Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Para o autor citado, tais obras são carregadas de ceticismo quanto às possibilidades de reforma.
A utopia em A cidade do Sol
Segundo Mora (2001), as utopias, embora difiram entre si, têm em comum o fato de descreverem uma sociedade perfeita, e não apenas isso, mas também de as descreverem com todo detalhe do que nela há, sua estrutura física, elementos de sua construção e guarnições e também de como nela se vive, seu governo, condições de propriedade, trabalho, educação e todas esses elementos relacionados às condições de vida digna.
Desse modo A cidade do Sol de Tommaso Campanella encaixa-se perfeitamente nesse perfil de sociedade utópica. Nela o autor descreve toda a estrutura da cidade, sua construção, localização, administração, comunhão de bens e de mulheres, educação, trabalho, religião, segurança e qualidade de vida.
N’A cidade do Sol, Campanella expõe um sistema que Huismam (2004) chama de comunista, porém, utópico. Nela, ele traça o plano de uma república imaginária em que reinaria a igualdade política e econômica sustentadas por um alto nível tecnológico e científico, inclusive, segundo Lopes Coelho (2009), nela Campanella já levanta possibilidades daquilo que mais tarde foi a revolução científica.
O caráter revolucionário de Campanella, motivador de seus desejos de reforma universal, sua frustração na insurreição contra a Espanha, em 1599, e a prisão a que fora condenado, levam-no, segundo Mora (2000), a escrever, em 1602, A cidade do Sol, representando, com um diálogo entre o grão mestre da ordem dos hospitalários e um almirante genovês, as aspirações de uma cidade capaz de abranger todos os homens e de solucionar de maneira radical o problema da concórdia entre seus habitantes.
A construção da cidade certifica sua funcionalidade, como descreve o próprio Campanella (2008 p. 19): “Na vasta planície surge uma colina, sobre a qual se ergue a cidade”, “está dividida em sete círculos”, “nem o primeiro círculo é possível superar, por ter muralhas muito largas e fortificadas”, “logo surgem palácios... no alto deles se erguem pequenas torres” e no lugar mais alto do monte “há um grande espaço plano, no meio do qual surge um templo de estupenda arquitetura”.
De acordo com a descrição acima, idealiza-se na Cidade do Sol uma fortaleza. Um lugar no qual os habitantes pudessem organizadamente sentir-se seguros e tendo acima de si, no topo do monte, a referência da república teocrática, o templo, de onde o soberano governaria a cidade.
O governo da cidade está centrado no príncipe sacerdote metafísico Sol, ou, como na tradução de Aristides Lôbo (1978) na coleção Os Pensadores, Hoh. Este é assessorado por três príncipes Pon, Sin e Mor, “nomes que significam potência, sabedoria e amor” (CAMPANELLA, 2008, p. 22). Cada um desempenha seu papel de modo justo e competente:
Potência administra as questões que envolvem guerra e paz, além da arte militar; é comandante supremo na guerra, mas não acima de Sol. É ele que preside os oficiais, os guerreiros, os soldados, que trata das munições, expugnações e fortificações (Campanella, 2008, p. 22).
Sabedoria cuida de todas as ciências, dos doutores e magistrados das artes liberais e mecânicas e tem sob sua dependência tantos dirigentes, quantas são as ciências: há o astrólogo, o cosmógrafo, o geômetra, o lógico, o retórico, o gramático, o médico, o físico, o político, o moral (Campanella, 2008, p. 22).
Amor cuida da geração, zelando pela união de homens e mulheres, de tal modo que produzam excelente prole... tem sob sua direção a educação, a medicina, as especiarias, a semeadura e a colheita das frutas e dos cereais, os alimentos e tudo que se refere à alimentação, ao vestuário e a geração, tendo sob sua dependência muitos professores... que se dedicam a essas artes e ofícios (Campanella, 2008, p. 25).
Campanella (2008, p.25) enfatiza que “o Metafísico administra todas essas coisas” e “nada é feito sem a anuência dele”. Abaixo de Potência, Sabedoria e Amor estão os magistrados que correspondem “a todas as virtudes que conhecemos” (CAMPANELLA, 2008, p. 28): liberalidade, castidade, magnanimidade, Fortaleza, Justiça, Diligência, Verdade, Gratidão e outros, todos zelam pela harmonia entre os irmãos. No entanto, observadas as funções de cada um e colocadas, como na Callipolis de Platão, em função da comunidade, a Cidade do Sol configura-se com clareza às tradicionais utopias, haja vista que todos os solares têm funções específicas e direitos iguais assegurados. Além disso, segundo Lopes Coelho (2009), o poder soberano atribuído a Sol, não representa para Campanella poder de dominação, mas pelo contrário, poder de organização e conhecimento, já que, também como em Platão, é o maior conhecedor de todas as ciências e quanto maior a sapiência, tanto menor a inclinação para o autoritarismo.
Lopes Coelho (2009) afirma o princípio da comunidade na Cidade do Sol. Segundo ele, os solares possuíam tudo em comum: casas, dormitórios, leitos e mulheres e de seis em seis meses trocavam de lugar. Com esse procedimento, pretendiam evitar sentimentos de propriedade, de herança, de amor-próprio, origem dos males entre os humanos, em detrimento do amor comum, pela comunidade. Seu amor pela pátria também era muito grande, visto que o amor à coisa pública aumenta, na proporção em que se renuncia ao interesse particular, como afirma o filósofo:
Dizem eles que toda espécie de propriedade tem origem do fato de construir casa em separado, de ter filhos e mulher própria, o que finalmente gera o amor-próprio; por essa razão é que, para cumular de riquezas e dignidades o filho ou para deixar-lhe herança, cada um, se for poderoso e destemido, se torna fraudador da coisa pública; se não for poderoso, se torna avarento, insidioso e hipócrita. Perdido o amor-próprio, porém, permanece sempre e unicamente o bem comum (CAMPANELLA, 2008, p. 26).
A conquista do bem comum é o que assegura a verdadeira sociedade, ou seja, o agrupamento social regido pela igualdade encontrado essencialmente nas utopias, que Lalande (1999) considera existir a partir do acesso possível aos direitos políticos, às funções, à hierarquia e às dignidades públicas a todos os indivíduos, sem distinção de classe ou riqueza, o que é evidente na Cidade do Sol, principalmente quanto à divisão justa dos bens.
Tal organização alcança seu cume na estruturação do trabalho entre os solares. Todos praticam a arte militar, a agricultura e a pecuária e quem dentre eles se tornar melhor no exercício de cada uma, torna-se mestre, comprometendo-se também com a educação dos mais jovens para o seu exercício. Esses três ofícios, de acordo com Albornoz (2005), sustentam a comunhão entre os habitantes da cidade. Além disso, são a síntese de todo o trabalho conhecido até então, dando indícios da confiança de Campanella de que sua utopia seria possível.
A educação se dá em função do trabalho, sendo a princípio dada universalmente, pois “todos são educados em todas as artes” (CAMPANELLA, 2008, p. 29), depois, por aptidão, particulariza-se. Educam a mente nas diversas ciências e o corpo nos vários ofícios com técnicas apropriadas à idade de cada solar. Os mestres formam novos mestres, e dentre eles surgem os futuros magistrados, conforme as propensões de cada um àquela virtude pela qual zelará na magistratura.
De caráter bastante utópico é também a idealização de Campanella quanto às boas condições de vida dos solares. Segundo ele, “vivem pelo menos cem anos, muitos chegam a cento e sessenta e raríssimos são os que atingem os duzentos” (CAMPANELLA, 2008, p. 55). Para tanto, descreve todo o conjunto que, ao seu ver, determinaria a longevidade da vida humana. Além daquilo que é natural, como a alimentação, o trabalho e o descanso, e daquilo que é científico, por exemplo, o conhecimento medicinal, há também muito de magia no pensamento de Campanella. Isso se faz notar principalmente na orientação astrológica na qual a cidade se baseia e na crença de que os astros determinam rumos na vida humana, “por isso, ao construir a cidade, trataram de seguir os signos fixados nos quatros cantos do mundo” (CAMPANELLA, 2008, p. 54).
A utopia de Campanella é ainda, segundo Coelho da Costa (2006), a primeira a dar um papel mais importante às ciências naturais, sendo tecnologicamente avançada. Seus habitantes, conforme o próprio Campanella, usavam carros munidos de velas, que servem mesmo quando sopra vento contrário, graças a um admirável aparelhamento de rodas. Coelho Costa (2006) também chama a atenção para a “eugenia” presente na Cidade do Sol. Segundo ele, os casais eram selecionados para cruzamento pelos magistrados com tanto cuidado quanto os romanos escolhiam os melhores pares dos animais. Para Campanella a geração deve ser observada religiosamente para o bem público e não para o privado e, além disso, a geração de boa prole é importante na idealização da sociedade que se torna mais perfeita à medida que seus habitantes o são.
Assim a ideia central de A Cidade do Sol, segundo Mioranza (2008), está no fato de o autor elevar sua voz por uma participação democrática de todos os cidadãos para a construção de uma verdadeira sociedade justa que dignifique a vida de todos os seus membros. É, portanto, segundo ele, um hino à igualdade dos homens, à democracia e à distribuição equânime dos bens numa época em que os direitos inalienáveis do homem não passavam de pura fantasia.
O lugar da utopia hoje
Oliveira de Paula (2008) considera que a pós-modernidade , acompanhada da cultura de consumo, parece ter trazido consigo a morte das ideias utópicas. As distopias de Huxley e de Orwel incrementam o duelo entre o capitalismo e o vencido socialismo, que na sua derrocada, deu margem à perfeita desilusão com as ideias utópicas.
Segundo Teixeira Coelho (1978), se o século XIX tentou tornar as utopias políticas lugares concretos e reais, o século XX a fez surgir como uma moribunda, cedendo terreno sob os ataques que sobre ela convergiram de todos os lados, parecendo a imaginação utópica afundar sob o peso dos apelos à razão. É, para ele, o momento da tendência à desilusão aquele a partir do qual a União Soviética se transforma em distopia burocrática. Outro “coveiro”, na expressão de Teixeira Coelho (1978), se tem naqueles que, com base nas sociedades europeias passíveis de serem chamadas social-democratas, afirmam terem-se extinguido os projetos utópicos pelo fato de existirem hoje todas as condições econômicas e sociais para realizá-las.
O individualismo presente na sociedade atual também se soma aos fatores de desilusão apontados sobre a utopia. Para Oliveira de Paula (2008, p. 18), ele se impôs “de tal forma que as pessoas sequer se dão ao luxo de idealizar uma sociedade baseada em outro sistema ou qualquer tipo de revolução”. Cita Marcuse, para quem todas as forças materiais e intelectuais necessárias para a mudança na sociedade continuam presentes no mundo atual, estando, no entanto, abafadas pelo sistema capitalista e, assim, imobilizadas diante dele. Ainda referindo-se à Marcuse, Oliveira de Paula escreve:
Para ele, a sociedade involuiu no que diz respeito ao trabalho, por exemplo. Seria necessário, com mais tecnologia, a possibilidade de menos trabalho e mais tempo livre, para um cultivo intelectual maior. E o que assistimos hoje é exatamente o contrário. As pessoas trabalham mais na ânsia de acumular mais recursos, imbuídos pela lógica capitalista da cultura de consumo e da dialética do ser e do ter, do conflito do querer e do poder (Oliveira de Paula, 2008, p. 19).
Essa idealização do tempo livre para maior produção já se continha, inclusive na Cidade do Sol, na qual, devido à organização do trabalho, realizavam-no em apenas quatro horas, deixando o restante pra o lúdico e o intelectual.
Contudo, mesmo levando em consideração esses diversos fatores pelos quais se culminou na desilusão utópica, Teixeira Coelho (1978, p. 88) é enfático em dizer que “não é a utopia que está morrendo e nem a imaginação utópica”, mas, segundo ele, os ideais utópicos exclusivamente políticos resvalaram ao segundo plano. Quer, com isso, dizer que nessa transição da modernidade para a pós-modernidade (já presente no início dos anos 1970) o eixo da utopia mudou das dimensões objetivas da vida humana, para as dimensões mais subjetivas, principalmente, conforme seu pensamento, as questões de princípio erótico.
A capacidade de mudar de eixo pode ser entendida no pensamento de Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância, se não salvo ela não salvo a mim” (Ortega y Gasset apud Oliveira de Paula, 2008, p. 23). Oliveira de Paula (2008) considera com Ortega que os indivíduos vivem em condições herdadas da história, mas a sua fluidez, assim como a da vida, os obriga a se adaptar às realidades de seu tempo. Salvar a circunstância implica então, tanto em promover o bem social comum entre os humanos, como assegurar que na individualidade cada um satisfaça-se afetiva e emocionalmente.
Enfim, mesmo que o eixo da utopia tenha mudado, a esperança de se viver numa sociedade melhor permanece no homem. Como diz Sá (2009), embora o homem saiba que não possa realizar a utopia e que não está ao seu alcance superar a história, pode agir como se o pudesse fazer. O sentido da transformação social está na luta esperançosa. Num mundo
em que a representação utópica deixa de ser uma possibilidade ilusória, passando a ser uma “possibilidade possível”, perde-se a sua força política mobilizadora.
O mundo contemporâneo ainda busca o bem comum, fazendo-o de modo político, econômico, ecológico, afetivo e religioso, mesmo que esse bem da coletividade seja alcançado de modo inconsciente, a partir do momento que querendo o próprio bem se pense em alcançá-lo com dignidade social.
Considerações finais
Essa é, de maneira geral, uma organização do pensamento utópico, compreendido no seu conjunto histórico e filosófico. De fato, perpassa todo o trabalho a percepção de que o homem se alimenta de esperança para sua luta diária e, nessa espera, põe-se a caminhar na busca daquilo que de antemão idealizara.
Sonhos são projetos que, desenvolvendo-se, proporcionam uma nova conjuntura não apenas pessoal, mas estendendo-se também ao campo social, principalmente quando concretizam-se em favor do bem comum. O sonho de uma cidade que fosse do Sol, ou seja, daquele que brilha para todos, não era tão somente uma idealização inútil de Campanella, mas, como já dito, era sim o conjunto de suas aspirações políticas.
Como se notou na referência à sua vida, Campanella acreditava na possibilidade de existir uma cidade como aquela, tanto que por vezes quis ver algum império empenhado em tal realização, chegando, inclusive a empreender uma revolta em vista disso. O próprio fato de escrevê-la no cárcere remonta às suas convicções inabaláveis de reforma universal.
Certamente entre as várias coisas comuns às diversas utopias, o sentido do bem comum marca profundamente. A vida na comunidade é desde sempre o desafio que todas as ciências fizeram utópico e, em função dele, quiseram desenvolver teorias e ações diversas, que muitas vezes ficaram sem total concretização. A própria questão do subjetivismo e do individualismo presente na pós-modernidade desafia o sentido da comunidade e confrontam-no com os egoísmos vigentes.
Diante de tais questões, o espaço para as utopias parece não existir mais. O pragmatismo assume a cena do pensamento aparente e toda a gama de ideais se subjuga às vontades dele. No entanto, há se de perguntar se realmente não existe mais esse espaço. Além disso, há de se convir que aquelas utopias, ao exemplo da de Campanella, representavam uma forma de sociedade que, embora ideal, era literária, será então que não há ainda projetos utópicos em níveis bem mais reais no contexto político atual, como, por exemplo, o lugar utópico ocupado por Marina Silva hoje, o mesmo ocupado por Lula no final dos anos setenta? Ou, as questões ambientais, carregadas de idealizações de perfeição que estão em voga, não representam também um sonho? É justo lembrar ainda das CEB’s, que idealizam e lutam por comunidades de iguais condições e qualidade de vida justa, não são também elas vozes das utopias atuais?
Entender que tudo se torna impossível quando se desiste de lutar é reconhecer que as utopias podem mudar de aparência, mas se eternizam e concretizam no labor do dia-a-dia.
Cláudio Geraldo da Silva
Apresentado à História da Filosofia Moderna. Prof. Maurício Cruz. SDNSR.
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Palavras-chave: Campanella. Utopia. A cidade do Sol.
Introdução
O pensamento utópico marca a história da humanidade. Está presente no nível da vida das pessoas, na sua relação com a sociedade e com as circunstâncias históricas e temporais, principalmente na idealização do futuro, e não apenas na literatura chamada utópica, como é o típico caso de A República, de Platão, da Utopia, de Tomas More, de A cidade do Sol, de Tommaso Campanella, A nova Atlântida, de Francis Bacon e várias outras, inclusive não filosóficas.
O ideal de utopia presente nas obras citadas é unânime, principalmente quanto à idealização de sociedades supostamente perfeitas, nas quais os indivíduos tudo possuíssem em comum e, em comunidade, partilhassem dos bens conquistados. A perfeição da vida nessas sociedades imaginárias supõe a impossibilidade de sua efetivação, principalmente pela dificuldade de atingi-la, sem deixar de lançar pistas para tanto, descrevendo com minúcias os caminhos pelos quais a sociedade assim se torna.
A Cidade do Sol, descrita na obra de frei dominicano Tommaso Campanella, que aqui se toma como base, apresenta uma dessas cidades perfeitas. Nela todos têm iguais direitos e deveres e estão, de modo metafísico, sob a proteção de um rei sacerdote assessorado por um conjunto de príncipes e magistrados que garantem a harmonia em todos os sentidos aos habitantes dessa cidade.
Trata-se, assim, com a ajuda de pensadores e comentadores, de uma breve revisão histórica, acerca de Campanella e seu tempo e, a partir de sua obra A cidade do Sol, de uma observação e do ideal de utopia, focando principalmente a questão do bem comum. Para se chegar ao pensamento de Campanella, procura antes relembrar esse mesmo ideal em Platão, com sua Callipolis, e em More, mencionando ainda pensamentos posteriores, por critério de contextualização, como a utopia em Rousseau e o socialismo-comunista, percebendo nele a passagem do socialismo utópico ao científico; além disso, pontua elementos segundo os quais o ideal utópico está morto e sepultado, mas apresenta também sua eterna vida adaptada ao meio no qual se encontra.
A reflexão que aqui se faz está no sentido de perceber como o ideal utópico está presente no pensamento humano, além dos diversos modos como ele se dá, sabendo-o não apenas político, como se apresentou tradicionalmente, mas também econômico, ecológico, afetivo e religioso.
Pretende ainda, de algum modo, levantar a existência da utopia, sua solidez, enquanto pensamento, e sua perfeição, enquanto sociedades organizadas. Contudo, não evidencia certezas a seu respeito, somente elucida a necessidade de, pensando juntos, indivíduos e comunidades afirmarem-se na luta pelo mundo mais justo, igualitário e fraterno, que é tanto utópico, quanto possível.
O IDEAL UTÓPICO A PARTIR DA OBRA A CIDADE DO SOL DE TOMMASO CAMPANELLA
Visão geral do filósofo e seu tempo
Segundo Pessanha (1978) Campanella é nascido na cidade italiana de Stilo, na Calábria, no dia 5 de setembro de 1568, recebendo no batismo o nome de Giovan Domenico, tendo mudado-o para Tommaso, em homenagem a São Tomás de Aquino, ao ingressar na ordem dos dominicanos em 1583, aos quatorze anos de idade.
Campanella segue a tradição do pensamento renascentista. Embora no convento tenha estudado a filosofia aristotélica, como afirma Pessanha (1978), o estudo da filosofia campanelliana faz notável o que Reale e Antisere (2007) assinalam quanto à semelhança de Campanella a Giordano Bruno (1548-1600), principalmente quanto à prática e estudo da magia e da astrologia, assim como sua insistente convicção daquilo que havia de cumprir, além da reforma universal, que ambos imaginaram.
Ainda segundo Reale e Antisere (2007), as doutrinas naturalistas de Campanella trazem ainda profundas marcas da filosofia de Bernardino Telésio (1509-1588), que promovia um encontro direto com a natureza, única fonte de conhecimento, e, portanto, ruptura com a cultura livresca. Huismam (2004) afirma que o naturalismo telesiano satisfazia o desejo de Campanella de alcançar um saber direto, não mediado pela autoridade.
A obra Filosofia demonstrada pelos sentidos, que Campanella publicara em 1591, por trazer, segundo Huismam (2004), defesa às doutrinas telesianas, custou-lhe o primeiro processo por heresia, em Nápoles. Pessanha (1978) narra a perseguição da inquisição espanhola às ideias de Campanella, segundo o qual, passa alguns meses preso sob suspeita de obter conhecimentos de fontes diabólicas. Liberto, Campanella dirige-se, contrário às orientações de sua ordem que o obrigara a voltar à Calábria, à Pádua, onde conhece Galileu e é de novo acusado de heresia e absolvido.
Historicamente, segundo Amaral (2008), entre 1502 e 1504, França e Espanha guerrearam e o exército espanhol toma o reino de Nápoles e a Sicília, ao sul da Itália, enquanto a França fica com Milão, ao norte. Neste contexto de uma Itália desunificada está a Calábria, de Campanella, ainda subjugada ao poder espanhol e, se não bastasse a falta de autonomia política, as condições de vida manifestavam-se na profunda miséria da população.
De acordo com Pessanha (1978), tal situação sensibilizara Campanella, fazendo dele um líder intelectual de um complô político estourado em 1599. Para Huismam (2004), Campanella concebia essa conjuração como um momento de revolta para proclamar a partilha das terras feudais e também para libertar sua terra dos espanhóis e instaurar uma república teocrática cujo sacerdote e rei seria ele. A traição de alguns reacionários e a descoberta pelo governo espanhol causou o fracasso da revolução que custou a Campanella a pena de morte, da qual se livrou simulando loucura, mas permanecendo preso até 1626.
Reale e Antisere (2007) dividem a vida de Campanella em quatro fases. A primeira, já descrita, empreende da sua juventude ao fracasso da revolução contra a Espanha. Nesse período escreve Sobre a monarquia dos cristãos (1593), Sobre a hierarquia eclesiástica (1593) e Discursos a príncipes da Itália (1595). A segunda fase compreende seus 27 anos de encarceramento. Durante este tempo de início penoso, mas de comodidade adquirida aos poucos, muda seu pensamento e considera a Espanha a potência capaz de mudar o mundo. Escreve A cidade do Sol (1602), Dos sentidos das coisas e das magias (1604), Teologia (1613 e reescrita em 1624) e Apologia pró-Galileu (1616 e reescrita em 1622).
As fases terceira e quarta, descritas por Reale e Antisere (2007), referem-se à estada de Campanella em Roma e na França. Numa, após ter sido libertado pelo rei da Espanha, foi novamente retido, mas estando sob a proteção do papa Urbano VIII, tem como locus carceris o palácio do Santo Ofício em Roma. Criando afeição pela França é acusado injustamente de co-responsabilidade numa nova revolução contra a Espanha instaurada por um ex-discípulo seu, o que o obriga a fugir para a França. Lá vive a quarta fase, na qual goza de grandes homenagens, inclusive dos favores do cardeal Richilieu.
A morte de Campanella acontece em Paris, em 1639. Segundo Huismam (2004), no convento de Saint Honore e suas cinzas foram dispersas durante os distúrbios da revolução francesa.
É importante ressaltar o comentário de Reale e Antisere (2007) que atribui o amadurecimento fora de época das ideias de Campanella ao fato de ter ficado encarcerado pelos melhores anos de sua vida. Para eles, quando Campanella chegou a gozar de respaldo intelectual na França, já era a vez das ideias de Descartes, que nem sequer quis conhecê-lo.
A utopia na tradição filosófica
Teixeira Coelho (1989) considera que desde a antiga Torre de Babel até os recentes movimentos Hippies, o homem tem buscado o impossível, o utópico. Movido de uma força, que o autor citado convenciona chamar de “esperança”, a humanidade marcha rumo àquilo que ainda não é, que não existe, mas que acredita poder, regado a sonhos e lutas, tornar real.
O Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa define utopia como “descrição imaginativa de uma sociedade ideal” (HOUAISS, 2008, p.757). Oliveira de Paula (2008, p. 17), no entanto, lembra o sentido comum de utopia: “algo que não seja realizável, longe da realidade experienciável, irreal”.
Ambas as citações acima condizem com o conceito literal de Mora (2001, p. 2961): “utópico significa o que não está em nenhum lugar” e reafirma: “chama-se utópico todo o ideal – especialmente todo o ideal de sociedade humana – que se supõe maximamente desejável, mas que muitas vezes se considera inalcançável”.
Embora haja um consenso entre os filósofos e comentadores acerca da origem do termo utopia, atribuído a Thomas More a partir de sua obra assim chamada, na tradição filosófica o primeiro pensador a escrever uma utopia foi Platão com sua obra A república, na qual, segundo Reale e Antisere (2007), somente na condição de o político se tornar um filósofo é que se torna possível construir um Estado verdadeiramente fundado sobre o valor supremo da justiça e do bem.
De acordo com Mondin (2007), para Platão o estado ideal é o que quer viver no bem, na justiça e na verdade. Para isso, a Callipolis, ou seja, a melhor cidade idealizada por Platão, organiza-se em três classes (trabalhadores, guerreiros e magistrados), devidamente formadas para o exercício de sua atividades, que se colocam em função da comunidade, realizando aquilo que é próprio a cada uma. Reale e Antisere (2007) consideram que, em Platão, tal Estado reproduz em proporções maiores a alma humana. Nele, cada cidadão, independente da classe a que pertence, tem em si as faculdades próprias das demais classes.
Para Oliveira de Paula (2008), na Callipolis os interesses pessoais se casam com os da totalidade social. Nela, as pessoas por serem diferentes ocupam funções diferentes, assim estabelece-se uma forma de comunismo social, no qual sociedade e família são eliminados, evitando a cobiça e os interesses afetivos.
No entanto o próprio Platão através do diálogo entre Glauco e Sócrates estabelecido no livro IX de A república parece reconhecer o caráter utópico de sua obra:
Glauco – Você se refere àquela república de que descrevemos a fundação, mas que foi fundada somente em nossas palavras porque, eu acho, que no mundo não se encontre em parte alguma. Sócrates – Mas talvez exista seu modelo no céu para quem estiver disposto a vê-lo e apoiar-se ele próprio nesse Estado. De qualquer modo não importa se ele existe ou se foi destinado a existir. (PLATÃO, 2007, p. 339)
A Utopia de Thomas More, publicada em 1516, também é, segundo Teixeira Coelho (1989), um livro no qual se relata a vida melhor levada pelos habitantes de uma ilha situada em algum lugar. Trata-se de uma ilha dividida em 54 cidades, todas de igual estrutura. Mondin (2007) a caracteriza como essencialmente agrícola e, diferentemente de A república, de base familiar. Nela, todos trabalham seis horas por dia para que todas as necessidades econômicas dos habitantes sejam igualmente satisfeitas. A vida do indivíduo deve se dar preferencialmente no meio comunitário, buscando equilibrar prazeres do espírito e saúde do corpo. Todos devem acreditar nalguma divindade superior, sendo proibido apenas o ateísmo. Reale e Antisere (2007) lembram ainda que na Utopia todos são iguais entre si, não havendo diferenças de renda e status.
Comparando sua república utópica às repúblicas reais, More escreve:
Todas as outras falam do interesse público e na verdade só cuidam dos interesses privados. Nessa república nada é privado e o que conta é o bem público. Todos sabem que, em outros lugares, cada um deve cuidar de si próprio, caso contrário, por mais próspero que seja o Estado, arrisca-se a morrer de fome; portanto, é forçado a ter em vista sobretudo os seus interesses e não aqueles do povo, ou seja, dos outros. Em Utopia, ao contrário, onde todo pertence a todos, qualquer cidadão está seguro de que não lhe faltará nada, desde que os celeiros públicos estejam repletos (MORE, p. 108).
Segundo Oliveira de Paula (2008), a obra de More é uma crítica social, política e religiosa à sua época. Isso se evidencia na primeira parte da obra, quando, segundo Huismam (2004), faz um papel semelhante ao do sociólogo, analisando e criticando os sistemas concretos então existentes. O diálogo figurativo com Rafael Hitlodeu, descrito nessa parte primeira, permite a More colocar em palavras de seu interlocutor uma crítica à Inglaterra de seu tempo, da qual era chanceler.
Reale e Antisere (2007) citam L. Firpo, para este a obra de More foi uma das que mais influenciou o curso da história, pois impulsionou o homem revoltado com o sistema a lutar e ressuscitou, conforme diz Huismam (2004), a filosofia política, mostrando, ao contrário de Maquiavel, que o pensamento político é sempre pensamento da utopia, pois é pensamento do possível e não do necessário.
Na sequência, a obra A cidade do Sol, de Tommaso Campanella, encaixa-se nesse estilo lítero-filosófico. Escrita em 1602, traz as aspirações de uma sociedade ideal, a partir dos anseios de um monge dominicano revolto com a situação política em sua região. Sobre a utopia nesta obra, se falará mais detalhadamente um pouco mais adiante.
Posteriormente, no século XVIII, Rousseau destaca-se no ideal utópico, como lembra Oliveira de Paula (2008), a partir do ideário de bondade e piedade do homem em seu estado de natureza, como ele mesmo menciona, referindo-se aos “naturais”, ou seja, àqueles que Colombo encontrara no paraíso terrestre, a América.
A afirmação de Rousseau: “O homem nasceu livre e em toda parte se encontra sob ferros” (ROUSSEAU, 2008, p. 16), é base para o desenvolvimento social que lhe segue, com a idealização, por parte das escolas reformistas, de modelos educacionais, sociais, políticos, econômicos e culturais em vista de uma transformação que culmina na formação do ser autônomo, libertário, o que, embora realizável, assume caráter utópico por sugerir um modelo ideal.
Ainda segundo Oliveira de Paula (2008), a utopia de Rousseau influenciou o pensamento de Karl Marx. No entanto, apesar de Marx e Engels comungarem do socialismo-comunista, em O manifesto do partido comunista condenam claramente a utopia presente no socialismo pensado, segundo Abbagnano (1998), por Saint Simon, Fourier e Proudhon. Neste socialismo a utopia engendra-se, como afirma Mannhein:
Também a experiência e a mentalidade socialista e comunista, no que diz respeito as suas origens, podem ser tratadas como uma unidade (...) Socialismo e utopia liberal são a mesma coisa no sentido de que ambos acreditam que o reino da liberdade e da igualdade só será feito em um futuro remoto. Mas o socialismo coloca o futuro, caracteristicamente, em um ponto mais determinado, por exemplo, no período do colapso da cultura capitalista. Esta ideia de solidariedade do socialismo com a ideia liberal, em sua orientação tinha uma meta situada no futuro, e se explica pelo fato de que ambos se recusam a aceitar direta e imediatamente, como faz a ordem existente. (MANNHEIM, 1993, p. 209, tradução nossa).
As estratégias marxistas, de acordo com Oliveira Paula (2008), expressam a vontade de apresentar uma sociedade mais justa e igualitária. No entanto, Teixeira Coelho (1989) reconhece que Marx, apesar de ter resgatado dos projetos utópicos os pontos convenientes ao seu próprio programa, concebia também a inviabilidade de se criar uma sociedade perfeita por decreto, seja de um pensador, seja do povo. A citação de Mannhein (1993) paraleliza socialismo e utopia, principalmente no que se refere à espera pela transformação da sociedade. Somente a partir do momento em que o caráter subjetivo do problema social cede lugar àquilo que se apresenta como ciência do social, ou seja, o materialismo histórico, é que o pensamento de Marx e Engels se distancia verdadeiramente da utopia, enquanto algo impossível e se busca concretizar tais ideais, é o lugar ao socialismo científico. Neste, como já citado em Mannhein (1993, p. 47 tradução nossa), “no período do colapso da cultura capitalista”, se prevê como certa a transformação do capitalismo em comunismo. Segundo Abbagnano (1998), esse caráter poderia sugerir uma utopia, não o fazendo por não prever formas de vivência das sociedades futuras.
Segundo Teixeira Coelho (1989), depois da desilusão socialista-comunista, abre-se espaço para a distopia, configurada na obra 1984, de George Orwell, e em Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Para o autor citado, tais obras são carregadas de ceticismo quanto às possibilidades de reforma.
A utopia em A cidade do Sol
Segundo Mora (2001), as utopias, embora difiram entre si, têm em comum o fato de descreverem uma sociedade perfeita, e não apenas isso, mas também de as descreverem com todo detalhe do que nela há, sua estrutura física, elementos de sua construção e guarnições e também de como nela se vive, seu governo, condições de propriedade, trabalho, educação e todas esses elementos relacionados às condições de vida digna.
Desse modo A cidade do Sol de Tommaso Campanella encaixa-se perfeitamente nesse perfil de sociedade utópica. Nela o autor descreve toda a estrutura da cidade, sua construção, localização, administração, comunhão de bens e de mulheres, educação, trabalho, religião, segurança e qualidade de vida.
N’A cidade do Sol, Campanella expõe um sistema que Huismam (2004) chama de comunista, porém, utópico. Nela, ele traça o plano de uma república imaginária em que reinaria a igualdade política e econômica sustentadas por um alto nível tecnológico e científico, inclusive, segundo Lopes Coelho (2009), nela Campanella já levanta possibilidades daquilo que mais tarde foi a revolução científica.
O caráter revolucionário de Campanella, motivador de seus desejos de reforma universal, sua frustração na insurreição contra a Espanha, em 1599, e a prisão a que fora condenado, levam-no, segundo Mora (2000), a escrever, em 1602, A cidade do Sol, representando, com um diálogo entre o grão mestre da ordem dos hospitalários e um almirante genovês, as aspirações de uma cidade capaz de abranger todos os homens e de solucionar de maneira radical o problema da concórdia entre seus habitantes.
A construção da cidade certifica sua funcionalidade, como descreve o próprio Campanella (2008 p. 19): “Na vasta planície surge uma colina, sobre a qual se ergue a cidade”, “está dividida em sete círculos”, “nem o primeiro círculo é possível superar, por ter muralhas muito largas e fortificadas”, “logo surgem palácios... no alto deles se erguem pequenas torres” e no lugar mais alto do monte “há um grande espaço plano, no meio do qual surge um templo de estupenda arquitetura”.
De acordo com a descrição acima, idealiza-se na Cidade do Sol uma fortaleza. Um lugar no qual os habitantes pudessem organizadamente sentir-se seguros e tendo acima de si, no topo do monte, a referência da república teocrática, o templo, de onde o soberano governaria a cidade.
O governo da cidade está centrado no príncipe sacerdote metafísico Sol, ou, como na tradução de Aristides Lôbo (1978) na coleção Os Pensadores, Hoh. Este é assessorado por três príncipes Pon, Sin e Mor, “nomes que significam potência, sabedoria e amor” (CAMPANELLA, 2008, p. 22). Cada um desempenha seu papel de modo justo e competente:
Potência administra as questões que envolvem guerra e paz, além da arte militar; é comandante supremo na guerra, mas não acima de Sol. É ele que preside os oficiais, os guerreiros, os soldados, que trata das munições, expugnações e fortificações (Campanella, 2008, p. 22).
Sabedoria cuida de todas as ciências, dos doutores e magistrados das artes liberais e mecânicas e tem sob sua dependência tantos dirigentes, quantas são as ciências: há o astrólogo, o cosmógrafo, o geômetra, o lógico, o retórico, o gramático, o médico, o físico, o político, o moral (Campanella, 2008, p. 22).
Amor cuida da geração, zelando pela união de homens e mulheres, de tal modo que produzam excelente prole... tem sob sua direção a educação, a medicina, as especiarias, a semeadura e a colheita das frutas e dos cereais, os alimentos e tudo que se refere à alimentação, ao vestuário e a geração, tendo sob sua dependência muitos professores... que se dedicam a essas artes e ofícios (Campanella, 2008, p. 25).
Campanella (2008, p.25) enfatiza que “o Metafísico administra todas essas coisas” e “nada é feito sem a anuência dele”. Abaixo de Potência, Sabedoria e Amor estão os magistrados que correspondem “a todas as virtudes que conhecemos” (CAMPANELLA, 2008, p. 28): liberalidade, castidade, magnanimidade, Fortaleza, Justiça, Diligência, Verdade, Gratidão e outros, todos zelam pela harmonia entre os irmãos. No entanto, observadas as funções de cada um e colocadas, como na Callipolis de Platão, em função da comunidade, a Cidade do Sol configura-se com clareza às tradicionais utopias, haja vista que todos os solares têm funções específicas e direitos iguais assegurados. Além disso, segundo Lopes Coelho (2009), o poder soberano atribuído a Sol, não representa para Campanella poder de dominação, mas pelo contrário, poder de organização e conhecimento, já que, também como em Platão, é o maior conhecedor de todas as ciências e quanto maior a sapiência, tanto menor a inclinação para o autoritarismo.
Lopes Coelho (2009) afirma o princípio da comunidade na Cidade do Sol. Segundo ele, os solares possuíam tudo em comum: casas, dormitórios, leitos e mulheres e de seis em seis meses trocavam de lugar. Com esse procedimento, pretendiam evitar sentimentos de propriedade, de herança, de amor-próprio, origem dos males entre os humanos, em detrimento do amor comum, pela comunidade. Seu amor pela pátria também era muito grande, visto que o amor à coisa pública aumenta, na proporção em que se renuncia ao interesse particular, como afirma o filósofo:
Dizem eles que toda espécie de propriedade tem origem do fato de construir casa em separado, de ter filhos e mulher própria, o que finalmente gera o amor-próprio; por essa razão é que, para cumular de riquezas e dignidades o filho ou para deixar-lhe herança, cada um, se for poderoso e destemido, se torna fraudador da coisa pública; se não for poderoso, se torna avarento, insidioso e hipócrita. Perdido o amor-próprio, porém, permanece sempre e unicamente o bem comum (CAMPANELLA, 2008, p. 26).
A conquista do bem comum é o que assegura a verdadeira sociedade, ou seja, o agrupamento social regido pela igualdade encontrado essencialmente nas utopias, que Lalande (1999) considera existir a partir do acesso possível aos direitos políticos, às funções, à hierarquia e às dignidades públicas a todos os indivíduos, sem distinção de classe ou riqueza, o que é evidente na Cidade do Sol, principalmente quanto à divisão justa dos bens.
Tal organização alcança seu cume na estruturação do trabalho entre os solares. Todos praticam a arte militar, a agricultura e a pecuária e quem dentre eles se tornar melhor no exercício de cada uma, torna-se mestre, comprometendo-se também com a educação dos mais jovens para o seu exercício. Esses três ofícios, de acordo com Albornoz (2005), sustentam a comunhão entre os habitantes da cidade. Além disso, são a síntese de todo o trabalho conhecido até então, dando indícios da confiança de Campanella de que sua utopia seria possível.
A educação se dá em função do trabalho, sendo a princípio dada universalmente, pois “todos são educados em todas as artes” (CAMPANELLA, 2008, p. 29), depois, por aptidão, particulariza-se. Educam a mente nas diversas ciências e o corpo nos vários ofícios com técnicas apropriadas à idade de cada solar. Os mestres formam novos mestres, e dentre eles surgem os futuros magistrados, conforme as propensões de cada um àquela virtude pela qual zelará na magistratura.
De caráter bastante utópico é também a idealização de Campanella quanto às boas condições de vida dos solares. Segundo ele, “vivem pelo menos cem anos, muitos chegam a cento e sessenta e raríssimos são os que atingem os duzentos” (CAMPANELLA, 2008, p. 55). Para tanto, descreve todo o conjunto que, ao seu ver, determinaria a longevidade da vida humana. Além daquilo que é natural, como a alimentação, o trabalho e o descanso, e daquilo que é científico, por exemplo, o conhecimento medicinal, há também muito de magia no pensamento de Campanella. Isso se faz notar principalmente na orientação astrológica na qual a cidade se baseia e na crença de que os astros determinam rumos na vida humana, “por isso, ao construir a cidade, trataram de seguir os signos fixados nos quatros cantos do mundo” (CAMPANELLA, 2008, p. 54).
A utopia de Campanella é ainda, segundo Coelho da Costa (2006), a primeira a dar um papel mais importante às ciências naturais, sendo tecnologicamente avançada. Seus habitantes, conforme o próprio Campanella, usavam carros munidos de velas, que servem mesmo quando sopra vento contrário, graças a um admirável aparelhamento de rodas. Coelho Costa (2006) também chama a atenção para a “eugenia” presente na Cidade do Sol. Segundo ele, os casais eram selecionados para cruzamento pelos magistrados com tanto cuidado quanto os romanos escolhiam os melhores pares dos animais. Para Campanella a geração deve ser observada religiosamente para o bem público e não para o privado e, além disso, a geração de boa prole é importante na idealização da sociedade que se torna mais perfeita à medida que seus habitantes o são.
Assim a ideia central de A Cidade do Sol, segundo Mioranza (2008), está no fato de o autor elevar sua voz por uma participação democrática de todos os cidadãos para a construção de uma verdadeira sociedade justa que dignifique a vida de todos os seus membros. É, portanto, segundo ele, um hino à igualdade dos homens, à democracia e à distribuição equânime dos bens numa época em que os direitos inalienáveis do homem não passavam de pura fantasia.
O lugar da utopia hoje
Oliveira de Paula (2008) considera que a pós-modernidade , acompanhada da cultura de consumo, parece ter trazido consigo a morte das ideias utópicas. As distopias de Huxley e de Orwel incrementam o duelo entre o capitalismo e o vencido socialismo, que na sua derrocada, deu margem à perfeita desilusão com as ideias utópicas.
Segundo Teixeira Coelho (1978), se o século XIX tentou tornar as utopias políticas lugares concretos e reais, o século XX a fez surgir como uma moribunda, cedendo terreno sob os ataques que sobre ela convergiram de todos os lados, parecendo a imaginação utópica afundar sob o peso dos apelos à razão. É, para ele, o momento da tendência à desilusão aquele a partir do qual a União Soviética se transforma em distopia burocrática. Outro “coveiro”, na expressão de Teixeira Coelho (1978), se tem naqueles que, com base nas sociedades europeias passíveis de serem chamadas social-democratas, afirmam terem-se extinguido os projetos utópicos pelo fato de existirem hoje todas as condições econômicas e sociais para realizá-las.
O individualismo presente na sociedade atual também se soma aos fatores de desilusão apontados sobre a utopia. Para Oliveira de Paula (2008, p. 18), ele se impôs “de tal forma que as pessoas sequer se dão ao luxo de idealizar uma sociedade baseada em outro sistema ou qualquer tipo de revolução”. Cita Marcuse, para quem todas as forças materiais e intelectuais necessárias para a mudança na sociedade continuam presentes no mundo atual, estando, no entanto, abafadas pelo sistema capitalista e, assim, imobilizadas diante dele. Ainda referindo-se à Marcuse, Oliveira de Paula escreve:
Para ele, a sociedade involuiu no que diz respeito ao trabalho, por exemplo. Seria necessário, com mais tecnologia, a possibilidade de menos trabalho e mais tempo livre, para um cultivo intelectual maior. E o que assistimos hoje é exatamente o contrário. As pessoas trabalham mais na ânsia de acumular mais recursos, imbuídos pela lógica capitalista da cultura de consumo e da dialética do ser e do ter, do conflito do querer e do poder (Oliveira de Paula, 2008, p. 19).
Essa idealização do tempo livre para maior produção já se continha, inclusive na Cidade do Sol, na qual, devido à organização do trabalho, realizavam-no em apenas quatro horas, deixando o restante pra o lúdico e o intelectual.
Contudo, mesmo levando em consideração esses diversos fatores pelos quais se culminou na desilusão utópica, Teixeira Coelho (1978, p. 88) é enfático em dizer que “não é a utopia que está morrendo e nem a imaginação utópica”, mas, segundo ele, os ideais utópicos exclusivamente políticos resvalaram ao segundo plano. Quer, com isso, dizer que nessa transição da modernidade para a pós-modernidade (já presente no início dos anos 1970) o eixo da utopia mudou das dimensões objetivas da vida humana, para as dimensões mais subjetivas, principalmente, conforme seu pensamento, as questões de princípio erótico.
A capacidade de mudar de eixo pode ser entendida no pensamento de Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância, se não salvo ela não salvo a mim” (Ortega y Gasset apud Oliveira de Paula, 2008, p. 23). Oliveira de Paula (2008) considera com Ortega que os indivíduos vivem em condições herdadas da história, mas a sua fluidez, assim como a da vida, os obriga a se adaptar às realidades de seu tempo. Salvar a circunstância implica então, tanto em promover o bem social comum entre os humanos, como assegurar que na individualidade cada um satisfaça-se afetiva e emocionalmente.
Enfim, mesmo que o eixo da utopia tenha mudado, a esperança de se viver numa sociedade melhor permanece no homem. Como diz Sá (2009), embora o homem saiba que não possa realizar a utopia e que não está ao seu alcance superar a história, pode agir como se o pudesse fazer. O sentido da transformação social está na luta esperançosa. Num mundo
em que a representação utópica deixa de ser uma possibilidade ilusória, passando a ser uma “possibilidade possível”, perde-se a sua força política mobilizadora.
O mundo contemporâneo ainda busca o bem comum, fazendo-o de modo político, econômico, ecológico, afetivo e religioso, mesmo que esse bem da coletividade seja alcançado de modo inconsciente, a partir do momento que querendo o próprio bem se pense em alcançá-lo com dignidade social.
Considerações finais
Essa é, de maneira geral, uma organização do pensamento utópico, compreendido no seu conjunto histórico e filosófico. De fato, perpassa todo o trabalho a percepção de que o homem se alimenta de esperança para sua luta diária e, nessa espera, põe-se a caminhar na busca daquilo que de antemão idealizara.
Sonhos são projetos que, desenvolvendo-se, proporcionam uma nova conjuntura não apenas pessoal, mas estendendo-se também ao campo social, principalmente quando concretizam-se em favor do bem comum. O sonho de uma cidade que fosse do Sol, ou seja, daquele que brilha para todos, não era tão somente uma idealização inútil de Campanella, mas, como já dito, era sim o conjunto de suas aspirações políticas.
Como se notou na referência à sua vida, Campanella acreditava na possibilidade de existir uma cidade como aquela, tanto que por vezes quis ver algum império empenhado em tal realização, chegando, inclusive a empreender uma revolta em vista disso. O próprio fato de escrevê-la no cárcere remonta às suas convicções inabaláveis de reforma universal.
Certamente entre as várias coisas comuns às diversas utopias, o sentido do bem comum marca profundamente. A vida na comunidade é desde sempre o desafio que todas as ciências fizeram utópico e, em função dele, quiseram desenvolver teorias e ações diversas, que muitas vezes ficaram sem total concretização. A própria questão do subjetivismo e do individualismo presente na pós-modernidade desafia o sentido da comunidade e confrontam-no com os egoísmos vigentes.
Diante de tais questões, o espaço para as utopias parece não existir mais. O pragmatismo assume a cena do pensamento aparente e toda a gama de ideais se subjuga às vontades dele. No entanto, há se de perguntar se realmente não existe mais esse espaço. Além disso, há de se convir que aquelas utopias, ao exemplo da de Campanella, representavam uma forma de sociedade que, embora ideal, era literária, será então que não há ainda projetos utópicos em níveis bem mais reais no contexto político atual, como, por exemplo, o lugar utópico ocupado por Marina Silva hoje, o mesmo ocupado por Lula no final dos anos setenta? Ou, as questões ambientais, carregadas de idealizações de perfeição que estão em voga, não representam também um sonho? É justo lembrar ainda das CEB’s, que idealizam e lutam por comunidades de iguais condições e qualidade de vida justa, não são também elas vozes das utopias atuais?
Entender que tudo se torna impossível quando se desiste de lutar é reconhecer que as utopias podem mudar de aparência, mas se eternizam e concretizam no labor do dia-a-dia.
Cláudio Geraldo da Silva
Apresentado à História da Filosofia Moderna. Prof. Maurício Cruz. SDNSR.
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