Por que uma coisa pode mudar e,
no entanto, conservar sua identidade individual, de tal maneira que podemos
dizer que é a mesma coisa, ainda que a vejamos diferente do que fora antes?
Como sabemos que uma determinada roseira é a mesma que, no ano passado, não
passava de um ramo com poucas folhas e sem flor? Como sabemos que Paulo, hoje
adulto, é o mesmo Paulo que conhecemos criança?
Por que sinto que sei que sou
diferente das coisas? Porém, por que também sinto que sei que um outro corpo,
diferente e semelhante do meu, não é uma coisa, mas um alguém?
Por que eu e o outro podemos ver
de modo diferente, sentir e gostar de modo diferente, discordar sobre tantas
coisas, fazer coisas diferentes e, no entanto, ambos admitimos, sem sombra de
dúvida, que um triângulo, o número 5, o círculo, os arcos do palácio da
Alvorada, ou as pirâmides do Egito são exatamente as mesmas coisas para ele e
para mim?
O que é uma coisa? E um objeto? O
que é a subjetividade? O que é o corpo humano? E uma consciência? Perguntas
como essas constituem o campo da metafísica, ainda que nem sempre as mesmas
palavras tenham sido usadas para formulá-las.
Por exemplo, um filósofo grego
não falaria em “nada”, mas em “não-ser”. Não falaria em “objeto”, mas em
“ente”, pois a palavra objeto só foi usada a partir da Idade Média e, no
sentido em que a empregamos hoje, só foi usada a partir do século XVII. Também,
não falaria em “consciência”, mas em “psyche”, isto é, alma. Jamais falaria em
“subjetividade”, pois essa palavra, com o sentido que lhe damos hoje, só foi
usada a partir do século XVIII.
A mudança do vocabulário da
Filosofia no curso desses 25 séculos indica que mudaram os modos de formular as
questões e respondê-las, pois a Filosofia está na História e possui uma
história. No entanto, sob essas mudanças profundas, permaneceu a questão
metafísica fundamental: O que é?
A pergunta pelo que é A
metafísica é a investigação filosófica que gira em torno da pergunta “O que é?”
Este “é” possui dois sentidos:
1. significa “existe”, de modo
que a pergunta se refere à existência da realidade e pode ser transcrita como:
“O que existe?”;
2. significa “natureza própria de
alguma coisa”, de modo que a pergunta se refere à essência da realidade,
podendo ser transcrita como: “Qual é a essência daquilo que existe?”.
Existência e essência da
realidade em seus múltiplos aspectos são, assim, os temas principais da
metafísica, que investiga os fundamentos, as causas e o ser íntimo de todas as
coisas, indagando por que existem e por que são o que são.
A história da metafísica pode ser
dividida em três grandes períodos, o primeiro deles separado dos outros dois
pela filosofia de David Hume:
1. período que vai de Platão e
Aristóteles (séculos IV e III a.C.) até David Hume (século XVIII d.C.);
2. período que vai de Kant
(século XVIII) até a fenomenologia de Husserl (século XX);
3. metafísica ou ontologia
contemporânea, dos anos 20 aos anos 70 do século passado (XX).
Características da metafísica em seus períodos
No primeiro período, a metafísica
possui as seguintes características:
·
Investiga aquilo que é ou existe, a realidade em
si;
·
É um conhecimento racional apriorístico, isto é,
não se baseia nos dados conhecidos diretamente pela experiência sensível ou
sensorial (nos dados empíricos), mas nos puros conceitos formulados pelo
pensamento puro ou pelo intelecto;
·
É um conhecimento sistemático, isto é, cada
conceito depende de outros e se relaciona com outros, formando um sistema
coerente de idéias ligadas entre si;
·
Exige a distinção entre ser e parecer ou entre
realidade e aparência, seja porque para alguns filósofos a aparência é irreal e
falsa, seja porque para certos filósofos a aparência só pode ser compreendida e
explicada pelo conhecimento da realidade que subjaz a ela.
Esse primeiro período da
metafísica termina quando Hume demonstra que os conceitos metafísicos não
correspondem a nenhuma realidade externa, existente em si mesma e independente
de nós, mas são meros nomes gerais para as coisas, nomes que nos vêm pelo
hábito mental ou psíquico de associar em idéias as sensações, as percepções e
as impressões dos sentidos, quando são constantes, freqüentes e regulares.
O segundo período tem seu centro
na filosofia de Kant, que demonstra a impossibilidade dos conceitos
tradicionais da metafísica para alcançar e conhecer a realidade em si das
coisas. Em seu lugar, Kant propõe que a metafísica seja o conhecimento de nossa
própria capacidade de conhecer – seja uma crítica da razão pura teórica –
tomando a realidade como aquilo que existe para nós enquanto somos o sujeito do
conhecimento.
A metafísica poderá continuar
usando o mesmo vocabulário que usava tradicionalmente, mas o sentido conceitual
das palavras mudará totalmente, pois não se referem ao que existe em si e por si,
mas ao que existe para nós e é organizado por nossa razão. Embora com muitas
diferenças (que veremos mais tarde), Husserl trilhará um caminho próximo ao de
Kant.
A metafísica contemporânea é
chamada de ontologia (veremos posteriormente o sentido dessa palavra) e procura
superar tanto a antiga metafísica (conhecimento da realidade em si,
independente de nós), quanto a concepção kantiana (conhecimento da realidade
como aquilo que é para nós, porque posto por nossa razão). Considera o objeto
da metafísica a relação originária mundo-homem.
Suas principais características
são:
·
Investiga os diferentes modos como os entes ou
os seres existem;
·
Investiga a essência ou o sentido (a
significação) e a estrutura desses entes ou seres;
·
Investiga a relação necessária entre a
existência e a essência dos entes e o modo como aparecem para nossa
consciência, manifestação que se dá nas várias formas em que a consciência se
realiza (percepção, imaginação, memória, linguagem, intersubjetividade,
reflexão, ação moral e política, prática artística, técnicas);
·
Alguns consideram que a metafísica ou ontologia
contemporânea deveria ser chamada de descritiva, porque, em vez de oferecer uma
explicação apriorística da realidade, é uma interpretação racional da lógica da
realidade, descrevendo as estruturas do mundo e as do nosso pensamento.
Iniciação à Filosofia -
Marilena Chauí