domingo, 1 de junho de 2014

A Metafísica - Por que há seres em vez do nada?

Por que uma coisa pode mudar e, no entanto, conservar sua identidade individual, de tal maneira que podemos dizer que é a mesma coisa, ainda que a vejamos diferente do que fora antes? Como sabemos que uma determinada roseira é a mesma que, no ano passado, não passava de um ramo com poucas folhas e sem flor? Como sabemos que Paulo, hoje adulto, é o mesmo Paulo que conhecemos criança?
Por que sinto que sei que sou diferente das coisas? Porém, por que também sinto que sei que um outro corpo, diferente e semelhante do meu, não é uma coisa, mas um alguém?
Por que eu e o outro podemos ver de modo diferente, sentir e gostar de modo diferente, discordar sobre tantas coisas, fazer coisas diferentes e, no entanto, ambos admitimos, sem sombra de dúvida, que um triângulo, o número 5, o círculo, os arcos do palácio da Alvorada, ou as pirâmides do Egito são exatamente as mesmas coisas para ele e para mim?
O que é uma coisa? E um objeto? O que é a subjetividade? O que é o corpo humano? E uma consciência? Perguntas como essas constituem o campo da metafísica, ainda que nem sempre as mesmas palavras tenham sido usadas para formulá-las.
Por exemplo, um filósofo grego não falaria em “nada”, mas em “não-ser”. Não falaria em “objeto”, mas em “ente”, pois a palavra objeto só foi usada a partir da Idade Média e, no sentido em que a empregamos hoje, só foi usada a partir do século XVII. Também, não falaria em “consciência”, mas em “psyche”, isto é, alma. Jamais falaria em “subjetividade”, pois essa palavra, com o sentido que lhe damos hoje, só foi usada a partir do século XVIII.
A mudança do vocabulário da Filosofia no curso desses 25 séculos indica que mudaram os modos de formular as questões e respondê-las, pois a Filosofia está na História e possui uma história. No entanto, sob essas mudanças profundas, permaneceu a questão metafísica fundamental: O que é?
A pergunta pelo que é A metafísica é a investigação filosófica que gira em torno da pergunta “O que é?”

Este “é” possui dois sentidos:
1. significa “existe”, de modo que a pergunta se refere à existência da realidade e pode ser transcrita como: “O que existe?”;
2. significa “natureza própria de alguma coisa”, de modo que a pergunta se refere à essência da realidade, podendo ser transcrita como: “Qual é a essência daquilo que existe?”.
Existência e essência da realidade em seus múltiplos aspectos são, assim, os temas principais da metafísica, que investiga os fundamentos, as causas e o ser íntimo de todas as coisas, indagando por que existem e por que são o que são.
A história da metafísica pode ser dividida em três grandes períodos, o primeiro deles separado dos outros dois pela filosofia de David Hume:
1. período que vai de Platão e Aristóteles (séculos IV e III a.C.) até David Hume (século XVIII d.C.);
2. período que vai de Kant (século XVIII) até a fenomenologia de Husserl (século XX);
3. metafísica ou ontologia contemporânea, dos anos 20 aos anos 70 do século passado (XX).
                                                    
Características da metafísica em seus períodos
No primeiro período, a metafísica possui as seguintes características:
·         Investiga aquilo que é ou existe, a realidade em si;
·         É um conhecimento racional apriorístico, isto é, não se baseia nos dados conhecidos diretamente pela experiência sensível ou sensorial (nos dados empíricos), mas nos puros conceitos formulados pelo pensamento puro ou pelo intelecto;
·         É um conhecimento sistemático, isto é, cada conceito depende de outros e se relaciona com outros, formando um sistema coerente de idéias ligadas entre si;
·         Exige a distinção entre ser e parecer ou entre realidade e aparência, seja porque para alguns filósofos a aparência é irreal e falsa, seja porque para certos filósofos a aparência só pode ser compreendida e explicada pelo conhecimento da realidade que subjaz a ela.
Esse primeiro período da metafísica termina quando Hume demonstra que os conceitos metafísicos não correspondem a nenhuma realidade externa, existente em si mesma e independente de nós, mas são meros nomes gerais para as coisas, nomes que nos vêm pelo hábito mental ou psíquico de associar em idéias as sensações, as percepções e as impressões dos sentidos, quando são constantes, freqüentes e regulares.

O segundo período tem seu centro na filosofia de Kant, que demonstra a impossibilidade dos conceitos tradicionais da metafísica para alcançar e conhecer a realidade em si das coisas. Em seu lugar, Kant propõe que a metafísica seja o conhecimento de nossa própria capacidade de conhecer – seja uma crítica da razão pura teórica – tomando a realidade como aquilo que existe para nós enquanto somos o sujeito do conhecimento.
A metafísica poderá continuar usando o mesmo vocabulário que usava tradicionalmente, mas o sentido conceitual das palavras mudará totalmente, pois não se referem ao que existe em si e por si, mas ao que existe para nós e é organizado por nossa razão. Embora com muitas diferenças (que veremos mais tarde), Husserl trilhará um caminho próximo ao de Kant.
A metafísica contemporânea é chamada de ontologia (veremos posteriormente o sentido dessa palavra) e procura superar tanto a antiga metafísica (conhecimento da realidade em si, independente de nós), quanto a concepção kantiana (conhecimento da realidade como aquilo que é para nós, porque posto por nossa razão). Considera o objeto da metafísica a relação originária mundo-homem.
Suas principais características são:
·         Investiga os diferentes modos como os entes ou os seres existem;
·         Investiga a essência ou o sentido (a significação) e a estrutura desses entes ou seres;
·         Investiga a relação necessária entre a existência e a essência dos entes e o modo como aparecem para nossa consciência, manifestação que se dá nas várias formas em que a consciência se realiza (percepção, imaginação, memória, linguagem, intersubjetividade, reflexão, ação moral e política, prática artística, técnicas);
·         Alguns consideram que a metafísica ou ontologia contemporânea deveria ser chamada de descritiva, porque, em vez de oferecer uma explicação apriorística da realidade, é uma interpretação racional da lógica da realidade, descrevendo as estruturas do mundo e as do nosso pensamento.


Iniciação à Filosofia - Marilena Chauí