Há pelo menos duas maneiras de
abordar o problema da relação entre indivíduo e comunidade no pensamento de
Platão.
SÓCRATES
A primeira delas – correspondendo
à fase inicial de sua filosofia, em que Platão está mais fortemente
influenciado pelo pensamento socrático – formula a questão nos seguintes
termos: a existência de um ser humano (em seu sentido mais amplo: vital,
educacional, moral) depende inteiramente da comunidade em que vive (o que, na
época de Platão, era chamado de pólis). Sendo assim, o indivíduo deve ser
identificado com o cidadão, isto é, a pólis constitui o âmbito no qual sua vida
adquire significação. Mas a pólis não se confunde com a simples agregação de
pessoas. Ela é simultaneamente um espaço ético e legal. Por esse motivo, o bom
cidadão é aquele que, por um lado, toma para si a obrigação de cuidar do seu
próprio aperfeiçoamento moral e dos outros e, por outro lado, se compromete com
a obediência das leis. Nos textos que Platão escreveu, Sócrates encarna esse
ideal de cidadania.
Texto: “Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços
e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de
melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude
para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares
e públicos [para a cidade].” (Platão, Apologia de Sócrates, 30 b. Trad. de
Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1987, p. 15. Coleção Os Pensadores).
Explicação: Essas palavras de Sócrates (escritas por Platão e
supostamente pronunciadas diante de um tribunal que terminará por condená-lo à
morte) mostram que ocupar-se de si e dos outros é a principal tarefa do bom
cidadão. Mas em que exatamente essa função consiste?
Basicamente, trata-se de
incentivar a si mesmo e aos demais a priorizar os bens da alma, os quais podem
ser definidos como virtudes. Em uma ordem hierárquica, as virtudes estão acima
dos bens do corpo e das riquezas. E o que elas são? Para Sócrates (tal como
Platão o apresenta) essas virtudes estão ligadas às ideias que orientam nossas
ações, as idéias que nos fazem agir de uma determinada forma e não de outra.
Por exemplo, uma pessoa justa é aquela que age de acordo com a ideia da
justiça. Em termos práticos, isso quer dizer que ela age conforme aquilo que
acredita ser justo. A virtude, para Sócrates, é precisamente esse conhecimento
que nos leva a agir. Assim, o homem corajoso é aquele que sabe o que é a
coragem e, por causa disso, age segundo a virtude. Ora, essa opinião acerca do
que é a justiça (ou a coragem, ou outra virtude qualquer) nem sempre é
fundamentada. Muitas vezes apenas acreditamos saber o que é justo, mas se
formos indagados sobre a essência da justiça descobriremos que na verdade a
ignoramos. E nesse caso não somos realmente virtuosos. Sócrates, então,
dedicava sua vida a ajudar seus concidadãos a fazer essa pergunta a si mesmos,
a examinarem a si mesmos a fim de saber se conhecem realmente o que acreditam saber.
Essa atividade socrática pode não
ter a ver diretamente com a política. Mas no fundo, ela tem um grande efeito
político porque permite ao cidadão (ao examinar a si mesmo) reformular seu
papel na cidade e colocar em xeque os princípios que determinam sua prática
política. E esse cidadão com desenvolvida consciência crítica não vai deixar de
interrogar a validade dos princípios que fundamentam a vida em comum. Como vemos,
a consciência crítica dá origem a um distanciamento crítico do indivíduo frente
aos valores comumente partilhados. Isso não levaria a uma completa
desestabilização da ordem social e política? Para Platão a resposta é não.
PLATÃO
Com esse tema da justiça,
chegamos ao segundo modo de abordar o tema indivíduo/comunidade no pensamento
platônico. Uma preocupação maior de Platão é pensar quais são as condições para
que entre indivíduo e comunidade reine uma perfeita harmonia. O filósofo está
convencido dessa possibilidade porque há, segundo ele, uma correspondência
entre a alma do ser humano e a ordem política da cidade.
Texto: “- E o homem justo não será então em nada diferente da cidade
justa, no que respeita à noção de justiça, mas será semelhante a ela?
- Semelhante, disse ele.
- Mas uma cidade justa pareceria ser precisamente justa quando os três
grupos naturais presentes nela exercessem cada um sua tarefa própria e ela nos
pareceria moderada, ou ainda corajosa e sábia, em razão das afecções e
disposições particulares desses mesmos grupos.
- É verdade, disse ele.
- Logo, meu amigo, entendemos que o indivíduo, que tiver na sua alma
estas mesmas classes, merece bem, devido a estas mesmas qualidades, ser tratado
pelos mesmos nomes [os das virtudes referidas acima: moderação, coragem e
sabedoria] que a cidade.
- É absolutamente forçoso, disse ele”. (Platão, República, 435 b- c.
Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2001, p. 189. tradução modificada)
Explicação: Nesse diálogo, Platão mostra Sócrates conversando com
Glauco sobre o tema da justiça na alma e na cidade. Fica claro que ele acredita
que tanto uma quanto outra obedecem aos mesmos princípios. Pela mesma razão, é
possível falar de virtude não somente para se referir às qualidades morais
individuais, mas também para se referir ao modo como a pólis se organiza. Uma
alma “bem organizada” se caracteriza por uma correta disposição de seus
diversos elementos (as “três classes” a que o texto se refere: os desejos, as
paixões – ou impulsos – e a razão). Quando os desejos e afetos estão
devidamente orientados pela razão a alma possui uma estrutura harmônica. Na
cidade deve ocorrer a mesma coisa. Nela também temos três classes (os cidadãos
que trabalham e se ocupam de atividades econômicas, os que se ocupam da guerra
e da defesa da cidade e aqueles cidadãos que são encarregados de governar). Se
quem exerce a função de comandar os outros é um homem sábio e capaz de comandar
a si mesmo, então está assegurada a possibilidade da pólis ser unida e justa. A
justiça, para Platão, pode ser compreendida como essa boa ordem na alma e na
cidade. Ela pode igualmente ser definida da seguinte maneira: quando cada uma
das partes da alma de cada cidadão cumpre sua função própria sob o governo da
razão e quando cada cidadão faz o mesmo no âmbito da cidade, temos um indivíduo
e uma pólis justos. Resta, por fim, observar que essas duas ordens justas estão
referidas uma à outra. A justiça como virtude individual é imprescindível para
a existência de uma cidade justa, assim como a cidade justa é o lugar em que a
alma encontra a possibilidade de exercer a justiça e se tornar ela mesma justa.
Problema: Para Platão, a boa e justa organização da cidade deve
obedecer às diferenças naturais entre os homens. Assim, cada um ocupará o seu
lugar (de soldado, de artesão ou de governante) segundo os seus dons naturais.
Você vê algum problema nesta ideia?
Aristóteles
Como vimos, Platão, ao aproximar
os princípios morais dos princípios políticos, explicita a natureza dos fortes
laços que unem indivíduo e comunidade. Em Aristóteles vamos encontrar ponto de
vista semelhante, embora formulado de maneira distinta. Um trecho de seu livro
que trata da política ajudar a entender a questão.
Texto: “É manifesto (...) que a cidade faz parte das coisas naturais e
que o homem é por natureza um animal político, e aquele que está fora da cidade,
naturalmente, claro, e não por acidente das circunstâncias, é ou um ser
degradado ou um ser sobre-humano” (Aristóteles, Política, 1253 a -5. Trad. de
P. Pellegrin. Paris: Flammarion, 1993, p. 90. Há traduções para o português,
como a de Mário da Gama Kury e Roberto Leal Ferreira. Preferimos utilizar a
francesa por resguardar melhor o sentido dessa passagem).
Explicação: Para Aristóteles, a existência do homem implica seu
pertencimento a uma comunidade política. Apenas os animais ou os deuses escapam
à condição política. É nesse sentido que a vida política é entendida como
natural ao homem. Isso não significa que a cidade é natural assim como o mundo
que nos cerca, o universo, as plantas ou os outros animais. A cidade é natural
ao homem, ou ainda, a natureza humana é caracterizada por uma inclinação a
viver em sociedade. E devemos entender esta última afirmação da seguinte
maneira: o homem apenas se realiza como tal se vive em uma pólis. A inclinação,
portanto, nada tem de acidental.
Essa série de considerações nos
leva a pensar sobre a ideia do bem humano. Para Aristóteles, a natureza
política do homem está associada ao fato de que somente vivendo em comunidade
ele pode encontrar as condições necessárias para alcançar o bem supremo, isto
é, a felicidade. A finalidade primeira da cidade é, assim, a concretização
desse bem superior, o que confere à associação política a primazia sobre todas
as demais formas de associação, incluindo a família.
Esse bem, contudo, não deve ser
confundido com algo externo ao homem ou com uma coisa que ele poderia possuir e
perder. O bem que se realiza na vida política corresponde a uma atividade, a um
modo de vida. A qual atividade Aristóteles está se referindo? Ora, para
pertencer efetivamente a uma pólis é requerido o exercício da cidadania, isto
é, participar diretamente da vida política, seja exercendo cargos (que, nesse contexto,
recebiam a denominação geral de “magistraturas”) seja frequentando as
instâncias decisórias (como os tribunais e as assembleias deliberativas). Em
outras palavras, o cidadão deveria conhecer não apenas a situação de governado,
mas também a de governante, contribuindo, individualmente, para o bem do todo.
É claro que o bem individual está implicado no bem do todo, e Aristóteles está
convencido de que essa vinculação é essencial. Porém, o bem individual não está
simplesmente contido no bem comum. Na verdade, cuidar do bem comum é já exercer
uma atividade virtuosa, é já experimentar uma vida boa. A participação na vida
pública é a ocasião para que o ser humano desenvolva suas virtudes e este
desenvolvimento é inerente à ideia de realização e de felicidade. Logo, não há
felicidade sem política.
Entre Platão e Aristóteles há,
como podemos ver, uma grande afinidade, apesar de suas filosofias políticas
entenderem distintamente o papel do cidadão na vida pública. Platão insiste na
necessidade do domínio de certo conhecimento (uma ciência política) para o
exercício do poder, ao passo que Aristóteles está mais preocupado com as
condições políticas para que o cidadão “comum” (e não somente o homem sábio)
possa desempenhar bem seu papel na vida pública. No entanto, ambos estão
convencidos de que a melhor condição para a existência humana é aquela na qual
impera uma relação de complementaridade – quer dizer, de unidade – entre a vida
individual e a vida política. Lembramos ainda que tanto Platão quanto
Aristóteles acreditam que a comunidade política é natural e necessária também
por causa da desigualdade natural entre os homens, o que exige uma coletividade
na qual diferentes funções possam ser desempenhadas por pessoas diferentes.
Como última observação, valeria
lembrar que as perspectivas desses filósofos estavam longe de ser as únicas e
as mais aceitas em sua época. Alguns pensadores pertencentes ao mesmo período
(como os denominados “sofistas”) chamavam a atenção para os conflitos de
interesses entre o indivíduo e a comunidade, os quais eram superados ou por
intermédio de um acordo ou por via da força. Como quer que seja, não haveria,
de acordo com sua visão, uma harmonia entre homem e cidade que estivesse
fundada na natureza.
Problema: As concepções de Platão e Aristóteles fazem pensar em uma
série de questões que podemos colocar a respeito de nossa realidade política.
Por exemplo, como devemos agir quando uma lei nos parece injusta? Quais
relações ética e política mantêm entre si? Uma pessoa pode ser realmente feliz
a despeito da felicidade alheia? Tente responder a essas questões e, a partir
da leitura do texto, elabore outras.