segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Indivíduo e comunidade: A questão política nos gregos clássicos

Há pelo menos duas maneiras de abordar o problema da relação entre indivíduo e comunidade no pensamento de Platão.

SÓCRATES
A primeira delas – correspondendo à fase inicial de sua filosofia, em que Platão está mais fortemente influenciado pelo pensamento socrático – formula a questão nos seguintes termos: a existência de um ser humano (em seu sentido mais amplo: vital, educacional, moral) depende inteiramente da comunidade em que vive (o que, na época de Platão, era chamado de pólis). Sendo assim, o indivíduo deve ser identificado com o cidadão, isto é, a pólis constitui o âmbito no qual sua vida adquire significação. Mas a pólis não se confunde com a simples agregação de pessoas. Ela é simultaneamente um espaço ético e legal. Por esse motivo, o bom cidadão é aquele que, por um lado, toma para si a obrigação de cuidar do seu próprio aperfeiçoamento moral e dos outros e, por outro lado, se compromete com a obediência das leis. Nos textos que Platão escreveu, Sócrates encarna esse ideal de cidadania.

Texto: “Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos [para a cidade].” (Platão, Apologia de Sócrates, 30 b. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1987, p. 15. Coleção Os Pensadores).

Explicação: Essas palavras de Sócrates (escritas por Platão e supostamente pronunciadas diante de um tribunal que terminará por condená-lo à morte) mostram que ocupar-se de si e dos outros é a principal tarefa do bom cidadão. Mas em que exatamente essa função consiste?
Basicamente, trata-se de incentivar a si mesmo e aos demais a priorizar os bens da alma, os quais podem ser definidos como virtudes. Em uma ordem hierárquica, as virtudes estão acima dos bens do corpo e das riquezas. E o que elas são? Para Sócrates (tal como Platão o apresenta) essas virtudes estão ligadas às ideias que orientam nossas ações, as idéias que nos fazem agir de uma determinada forma e não de outra. Por exemplo, uma pessoa justa é aquela que age de acordo com a ideia da justiça. Em termos práticos, isso quer dizer que ela age conforme aquilo que acredita ser justo. A virtude, para Sócrates, é precisamente esse conhecimento que nos leva a agir. Assim, o homem corajoso é aquele que sabe o que é a coragem e, por causa disso, age segundo a virtude. Ora, essa opinião acerca do que é a justiça (ou a coragem, ou outra virtude qualquer) nem sempre é fundamentada. Muitas vezes apenas acreditamos saber o que é justo, mas se formos indagados sobre a essência da justiça descobriremos que na verdade a ignoramos. E nesse caso não somos realmente virtuosos. Sócrates, então, dedicava sua vida a ajudar seus concidadãos a fazer essa pergunta a si mesmos, a examinarem a si mesmos a fim de saber se conhecem realmente o que acreditam saber.

Essa atividade socrática pode não ter a ver diretamente com a política. Mas no fundo, ela tem um grande efeito político porque permite ao cidadão (ao examinar a si mesmo) reformular seu papel na cidade e colocar em xeque os princípios que determinam sua prática política. E esse cidadão com desenvolvida consciência crítica não vai deixar de interrogar a validade dos princípios que fundamentam a vida em comum. Como vemos, a consciência crítica dá origem a um distanciamento crítico do indivíduo frente aos valores comumente partilhados. Isso não levaria a uma completa desestabilização da ordem social e política? Para Platão a resposta é não.










PLATÃO
Com esse tema da justiça, chegamos ao segundo modo de abordar o tema indivíduo/comunidade no pensamento platônico. Uma preocupação maior de Platão é pensar quais são as condições para que entre indivíduo e comunidade reine uma perfeita harmonia. O filósofo está convencido dessa possibilidade porque há, segundo ele, uma correspondência entre a alma do ser humano e a ordem política da cidade.

Texto: “- E o homem justo não será então em nada diferente da cidade justa, no que respeita à noção de justiça, mas será semelhante a ela?
- Semelhante, disse ele.
- Mas uma cidade justa pareceria ser precisamente justa quando os três grupos naturais presentes nela exercessem cada um sua tarefa própria e ela nos pareceria moderada, ou ainda corajosa e sábia, em razão das afecções e disposições particulares desses mesmos grupos.
- É verdade, disse ele.
- Logo, meu amigo, entendemos que o indivíduo, que tiver na sua alma estas mesmas classes, merece bem, devido a estas mesmas qualidades, ser tratado pelos mesmos nomes [os das virtudes referidas acima: moderação, coragem e sabedoria] que a cidade.
- É absolutamente forçoso, disse ele”. (Platão, República, 435 b- c. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 189. tradução modificada)
Explicação: Nesse diálogo, Platão mostra Sócrates conversando com Glauco sobre o tema da justiça na alma e na cidade. Fica claro que ele acredita que tanto uma quanto outra obedecem aos mesmos princípios. Pela mesma razão, é possível falar de virtude não somente para se referir às qualidades morais individuais, mas também para se referir ao modo como a pólis se organiza. Uma alma “bem organizada” se caracteriza por uma correta disposição de seus diversos elementos (as “três classes” a que o texto se refere: os desejos, as paixões – ou impulsos – e a razão). Quando os desejos e afetos estão devidamente orientados pela razão a alma possui uma estrutura harmônica. Na cidade deve ocorrer a mesma coisa. Nela também temos três classes (os cidadãos que trabalham e se ocupam de atividades econômicas, os que se ocupam da guerra e da defesa da cidade e aqueles cidadãos que são encarregados de governar). Se quem exerce a função de comandar os outros é um homem sábio e capaz de comandar a si mesmo, então está assegurada a possibilidade da pólis ser unida e justa. A justiça, para Platão, pode ser compreendida como essa boa ordem na alma e na cidade. Ela pode igualmente ser definida da seguinte maneira: quando cada uma das partes da alma de cada cidadão cumpre sua função própria sob o governo da razão e quando cada cidadão faz o mesmo no âmbito da cidade, temos um indivíduo e uma pólis justos. Resta, por fim, observar que essas duas ordens justas estão referidas uma à outra. A justiça como virtude individual é imprescindível para a existência de uma cidade justa, assim como a cidade justa é o lugar em que a alma encontra a possibilidade de exercer a justiça e se tornar ela mesma justa.
Problema: Para Platão, a boa e justa organização da cidade deve obedecer às diferenças naturais entre os homens. Assim, cada um ocupará o seu lugar (de soldado, de artesão ou de governante) segundo os seus dons naturais. Você vê algum problema nesta ideia?







Aristóteles
Como vimos, Platão, ao aproximar os princípios morais dos princípios políticos, explicita a natureza dos fortes laços que unem indivíduo e comunidade. Em Aristóteles vamos encontrar ponto de vista semelhante, embora formulado de maneira distinta. Um trecho de seu livro que trata da política ajudar a entender a questão.
Texto: “É manifesto (...) que a cidade faz parte das coisas naturais e que o homem é por natureza um animal político, e aquele que está fora da cidade, naturalmente, claro, e não por acidente das circunstâncias, é ou um ser degradado ou um ser sobre-humano” (Aristóteles, Política, 1253 a -5. Trad. de P. Pellegrin. Paris: Flammarion, 1993, p. 90. Há traduções para o português, como a de Mário da Gama Kury e Roberto Leal Ferreira. Preferimos utilizar a francesa por resguardar melhor o sentido dessa passagem).

Explicação: Para Aristóteles, a existência do homem implica seu pertencimento a uma comunidade política. Apenas os animais ou os deuses escapam à condição política. É nesse sentido que a vida política é entendida como natural ao homem. Isso não significa que a cidade é natural assim como o mundo que nos cerca, o universo, as plantas ou os outros animais. A cidade é natural ao homem, ou ainda, a natureza humana é caracterizada por uma inclinação a viver em sociedade. E devemos entender esta última afirmação da seguinte maneira: o homem apenas se realiza como tal se vive em uma pólis. A inclinação, portanto, nada tem de acidental.

Essa série de considerações nos leva a pensar sobre a ideia do bem humano. Para Aristóteles, a natureza política do homem está associada ao fato de que somente vivendo em comunidade ele pode encontrar as condições necessárias para alcançar o bem supremo, isto é, a felicidade. A finalidade primeira da cidade é, assim, a concretização desse bem superior, o que confere à associação política a primazia sobre todas as demais formas de associação, incluindo a família.

Esse bem, contudo, não deve ser confundido com algo externo ao homem ou com uma coisa que ele poderia possuir e perder. O bem que se realiza na vida política corresponde a uma atividade, a um modo de vida. A qual atividade Aristóteles está se referindo? Ora, para pertencer efetivamente a uma pólis é requerido o exercício da cidadania, isto é, participar diretamente da vida política, seja exercendo cargos (que, nesse contexto, recebiam a denominação geral de “magistraturas”) seja frequentando as instâncias decisórias (como os tribunais e as assembleias deliberativas). Em outras palavras, o cidadão deveria conhecer não apenas a situação de governado, mas também a de governante, contribuindo, individualmente, para o bem do todo. É claro que o bem individual está implicado no bem do todo, e Aristóteles está convencido de que essa vinculação é essencial. Porém, o bem individual não está simplesmente contido no bem comum. Na verdade, cuidar do bem comum é já exercer uma atividade virtuosa, é já experimentar uma vida boa. A participação na vida pública é a ocasião para que o ser humano desenvolva suas virtudes e este desenvolvimento é inerente à ideia de realização e de felicidade. Logo, não há felicidade sem política.

Entre Platão e Aristóteles há, como podemos ver, uma grande afinidade, apesar de suas filosofias políticas entenderem distintamente o papel do cidadão na vida pública. Platão insiste na necessidade do domínio de certo conhecimento (uma ciência política) para o exercício do poder, ao passo que Aristóteles está mais preocupado com as condições políticas para que o cidadão “comum” (e não somente o homem sábio) possa desempenhar bem seu papel na vida pública. No entanto, ambos estão convencidos de que a melhor condição para a existência humana é aquela na qual impera uma relação de complementaridade – quer dizer, de unidade – entre a vida individual e a vida política. Lembramos ainda que tanto Platão quanto Aristóteles acreditam que a comunidade política é natural e necessária também por causa da desigualdade natural entre os homens, o que exige uma coletividade na qual diferentes funções possam ser desempenhadas por pessoas diferentes.

Como última observação, valeria lembrar que as perspectivas desses filósofos estavam longe de ser as únicas e as mais aceitas em sua época. Alguns pensadores pertencentes ao mesmo período (como os denominados “sofistas”) chamavam a atenção para os conflitos de interesses entre o indivíduo e a comunidade, os quais eram superados ou por intermédio de um acordo ou por via da força. Como quer que seja, não haveria, de acordo com sua visão, uma harmonia entre homem e cidade que estivesse fundada na natureza.









Problema: As concepções de Platão e Aristóteles fazem pensar em uma série de questões que podemos colocar a respeito de nossa realidade política. Por exemplo, como devemos agir quando uma lei nos parece injusta? Quais relações ética e política mantêm entre si? Uma pessoa pode ser realmente feliz a despeito da felicidade alheia? Tente responder a essas questões e, a partir da leitura do texto, elabore outras.