sexta-feira, 18 de junho de 2010

Filosofia da Religião: Ziles e Luc Ferry


Desde o início do curso dessa disciplina se indagou sobre o que vem a ser filosofia e religião de modo separado, e, consecutivamente, o que seria a filosofia da religião. A estas questões chegou-se a algum consenso com a ajuda de Urbano Zilles e seu livro Filosofia da Religião, que orientou basicamente todo o curso.
A essas questões coube dizer que, sendo filosofia o ato reflexivo a partir da razão e religião a abertura à transcendência através de uma crença na garantia sobrenatural de salvação, poder-se-ia dizer que filosofia da religião seria, portanto, uma reflexão realizada com a única ajuda da razão, sendo a religião e as condições de possibilidade dela, seu objeto.
Importante notar dois aspectos desde o princípio que são essenciais ao desenvolvimento do presente trabalho: A reflexão e a salvação. A partir desses pontos discorre a filosofia de Luc Ferry, filósofo francês da atualidade, tratada em sua obra Aprender a Viver, numa tentativa de recordar a história da filosofia dentro dessa perspectiva filosófica, relacionando-a à uma transcendência imanentizada.
Para Ferry, a filosofia não é apenas um ato reflexivo com auxílio da razão, já que muitos não filósofos também refletem racionalmente. Ela vai muito além, é a base da vida sábia, já que os sábios foram os verdadeiros filósofos. Tal vida implicaria em muitas formas de preparação e ação diante das suas diversas circunstâncias; disso se trata mais propriamente no primeiro capítulo, mas se pode perceber nitidamente no decorrer da obra, na qual é notável a incompatibilidade, apresentada pelo autor, entre filosofia e religião, mesmo que ambas assentem-se sobre a promessa de uma salvação, não só espiritual, como a da religião, mas também no que se refere à dimensão espaço-temporal do homem que pode acreditar ou não, o que é próprio da filosofia.
Como Zilles, Ferry também salientou vários dos filósofos que abordaram a questão da religião em suas obras, levantando muitas das discussões polemizantes próprias de cada um. Embora não negue as falhas de grandes filósofos, como Marx, Freud e Nietzsche, prefere dar uma sequência ateia à filosofia dos dias atuais, apontando modos para se ter essa filosofia embutida na vida e, por conseguinte, naquilo que for próprio de cada homem, numa linha filosófica que denomina humanismo não metafísico.
De acordo com o autor, os homens creem em Deus porque temem a própria vida desprovida da muleta que Deus lhes é. A promessa que a religião faz em torno da figura de Deus de que não é preciso temer a morte, mas apenas esperá-la pacientemente, já que ela será apenas uma realidade passageira que intermedeia vida temporal terrena e vida eterna, afasta o homem da filosofia verdadeira.
Essa filosofia real é que promove o encontro do homem consigo mesmo, com seus anseios e medos, podendo por ela encontrar-se na verdade que o coloca na real situação de sua vida presente, onde sabiamente poderá optar lucidamente por aquilo que lhe for verdadeiramente mais conveniente a partir do conhecimento do mundo; é nesse sentido que o filósofo considera a relação filosofia e salvação, sendo ela o meio pelo qual o filósofo, liberto de seus medos e amarras, alcança a felicidade.
Partindo desse ponto, propõem-se os novos rumos para a filosofia na atualidade. Uma filosofia que não seja o arrastamento das críticas dos ateus materialistas, mas sim uma retomada de um humanismo, não metafísico, direcionado à problemática da sabedoria idealizada e concretizada pelo filósofo.
Em Luc Ferry, o crescimento é fundamental na descoberta e vivência da filosofia, novo modo de responder à problemática do sentido da vida. Aqui a vida identifica-se com a questão comunitária, o homem que se arranca de si e coloca-se no lugar do outro, experimentando a vida e as condições dos outros, faz uso e aperfeiçoa o pensamento, que ele próprio chama, alargado.
É como dizer que quem está por fora vê melhor que quem está por dentro. Ao se afastar de si mesmo e se ver pelo exterior o homem pode se conhecer melhor dentro da sua dimensão coletiva. Ir humanizando-se, configurando-se ao sentido de sua própria vida através da autorreflexão.
O desafio apresentado por Luc Ferry é sair do egocentrismo: “Precisamos dos outros para nos compreender a nós mesmos, precisamos de sua liberdade e, se possível, de sua felicidade para realizar nossa própria vida” (FERRY, 2007 p. 285). A percepção do outro fará do indivíduo um ser capaz de conhecer-se, amar-se, dar orientação e significado à sua vida.
O ideal do pensamento alargado consuma-se na vida que se passa, nas experiências adquiridas e nas expectativas construídas. É envelhecendo-se que se alarga a visão. Reconhecer que cada momento é ao mesmo tempo eterno e final é o ponto alto dessa filosofia que vai culminar numa visão do amor, que permitirá entender as razões pelas quais ele dá sentido à vida.
Esse amor relaciona-se àquilo que, para Ferry, é a excelência do filósofo: a sabedoria. Para tanto, baseia-se nos conceitos de particular e universal. Enquanto o particular é o ponto de partida, o universal é a finalidade, havendo entre eles o singular – subjetivo e pessoal – objeto do amor humano, entendido como uma particularidade que não se prendeu apenas ao particular, mas fundiu-se no horizonte superior a fez-se de acordo com o universal.
É essa singularidade que faz as pessoas se amarem. Amam-se pelas qualidades eternas que possuem, que os distinguem e os tornam sem igual. No entanto, se se detiver apenas às qualidades particulares nunca se amará verdadeiramente. Basicamente, equivale dizer que verdadeiramente ama-se a pessoa, com sua singularidade construída a cada dia de mil formas diferentes e não sua beleza ou outros atributos. O homem torna-se amável à medida que se humaniza no relacionamento.
Aqui há um ponto chave da filosofia de Ferry: Ao se amar uma pessoa naturalmente virá o medo de sua perda, e, entre outras coisas, nisso a filosofia terá papel importante, principalmente aos não crentes.
Metafisicamente, para a perda do ser amado pode haver uma preparação à moda budista, em que não há apego à pessoa, ou à moda cristã, em que se espera reencontrá-lo na ressurreição dos mortos. Ambas fazem sentido para seus seguidores, que são consolados pela doutrina que professam.
Contrariamente, a exortação de Ferry é para que todos se preocupem em viver bem a cada momento, entendendo-o como eterno, através da sabedoria do amor, elaborada na singularidade marcada pela amplitude do conhecimento do mundo.
De fato, a filosofia do humanismo não metafísico, ou seja, a preocupação com a singularidade do homem dentro de seu conjunto material autárquico, apresentado por Ferry, permeia pontos importantes daquilo que se chama filosofia da religião, uma vez que, embora não concebendo tal possibilidade, tenha desenvolvido também uma reflexão racional acerca das possíveis relações entre não somente homem e Deus, como também dos homens entre si.
A questão da salvação, por vezes tocada, lembra preocupações de muitos materialistas, aos quais Ferry não considera assemelhar, mas traz também pontos transcendentais, com os quais se identifica mais, principalmente por sua predileção por Immanuel Kant e sua filosofia. A não ignorância desta questão marca o caráter transcendental da consciência humana, que, conhecendo-se, ama e aproveita o máximo de cada instante de sua vida.
Relembrando Carlos Drummond de Andrade que escreveu: “A cada dia que vivo, mais me convenço que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos, também, a felicidade”. Como em Santo Agostinho, em que o homem está destinado a felicidade, provavelmente quer Luc Ferry alertar que o peso do passado e a esperança do futuro estragam o gosto do presente, momento no qual cada um pode livremente sentir-se eterno na sua vida, sem perder a compreensão de que sendo único, cada momento passa logo às coisas mortas da vida, através das quais se enriquece e alarga o pensamento, construindo a fina consciência de que aquele momento não deve ser nostálgico na memória, mas efetivo nas ações posteriores.
Por fim, a compreensão empreendida por Luc Ferry entre filosofia e religião não distancia as duas para aqueles que creem, mas as aparelha, mostrando pontos comuns a ambas. Aos descrentes, como ele, apenas salienta a possibilidade de divergência entre elas, mas não faz efetivamente a negação da prática e ação religiosa no homem e nem sequer menciona a inexistência de Deus. Deus, para ele, é problema daqueles que nele acreditam. Filosofar é, em Luc Ferry, antes de tudo, acreditar, viver, lutar e, só depois, refletir puramente. À vida se salva por amor. É assim na filosofia de Ferry, é assim no cristianismo!

Cláudio Geraldo da Silva

REFERÊNCIAS


FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para novos tempos. 1.ed. Objetiva, 2007. p. 233-302

ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2005.