sábado, 19 de junho de 2010

Espiritismo e cristianismo: Esposição e diálogo doutrinário


O espiritismo aparece comumente como a aptidão de comunicar com as almas dos falecidos e desenvolve sua doutrina a partir disso. Apesar dessa atividade ser severamente proibida pelo cristianismo, multidões de cristãos associam-se aos espíritas, no mesmo intuito de comunicar-se com o além.
Muitos motivos podem levar a isso. Alguém pode querer manter um contato sensível com as almas dos mortos para obter conhecimentos passados ou futuros, ou mesmo, saber o que está além da própria morte e da morte dos entes queridos. São levadas em conta também as questões clássicas do cristianismo, como a sobrevivência da alma, do destino dos que nos precederam e da realidade que cada um encontrará ao fim de sua vida.
A partir dessas motivações, o presente trabalho desenvolve-se em três momentos. Num primeiro, delineia o espiritismo, seu surgimento e sua doutrina, assim como faz com o cristianismo, num segundo momento. A parte final estabelece um paralelo entre ambas as doutrinas e chama a atenção para algumas realidades.
De caráter referencial, tomar-se-á como base livros de sentido didático, estudos relacionados ao caso, artigos cristãos e espíritas, versículos bíblicos e documentos e publicações da Igreja. A tentativa é de pontuar, ao final do trabalho, semelhanças e divergências entre as duas doutrinas, sem, no entanto, condenar a uma ou à outra, estabelecendo, de fato, um diálogo entre as ideias cristãs e espíritas.
Embora esteja clara essa idealização dialógica, é conveniente lembrar que não existe ideologia nua, ou seja, de algum modo poderá se perceber uma tendência de justificação do cristianismo sobre o espiritismo, contudo, isso não quer dizer que o objetivo aqui seja supervalorizar o cristianismo e diminuir o espiritismo, mas como já mencionado anteriormente, expor a ambos e levantar certas questões conflituosas.




1 – EXPOSIÇÃO DO ESPIRITISMO

Embora surgido nos meados do século XIX, nos Estados Unidos, a partir das impressões das irmãs Margaretha e Katherine Fox, que não encontravam explicações para os barulhos que ouviam e assim, os atribuíam aos mortos, a ideia espírita é muito mais antiga. Na antiguidade grega já se acreditava na metempsicose, doutrina órfica de cunho mítico e religioso, que se preocupava com a salvação e libertação da alma, prisioneira no homem.
No entanto, enquanto doutrina propriamente dita, o espiritismo surgiu na França em 1857 quando Allan Kardec publicou o Livro dos Espíritos, que continha os princípios da doutrina espírita sobre a imortalidade da alma, a natureza dos espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presente e futura e o porvir da humanidade, segundo o ensinamento dado pelos espíritos superiores por meio de diversos médiuns.
Kardec dividiu a doutrina espírita em cinco pontos básicos: Existência de Deus; existência da alma ou espírito; lei da reencarnação; lei da pluralidade dos mundos; lei do carma.
Deus é eterno, imutável, imaterial, único, onipresente, supramente justo e bom... Os seres materiais constituem o mundo visível ou corpóreo, e os seres imateriais constituem o mundo invisível ou dos espíritos... O mundo dos espíritos é primitivo... O mundo corpóreo é secundário... Os espíritos assumem temporariamente um invólucro material caduco (corpo), cuja destruição com a morte os restitui a liberdade... O homem tem duas naturezas, pelo corpo participa da natureza dos animais e pela alma da natureza dos espíritos... OS espíritos pertencem a diversas categorias... os da primeira ordem (superiores), distinguem-se dos outros por cognição, proximidade de Deus, pureza de sentimentos e amor ao bem (espíritos puros); as outras categorias se afastam gradualmente desta perfeição... Todos melhoram passando pelos diversos graus de hierarquia espírita... Os espíritos exercem no mundo moral e também no mundo corpóreo uma influência perene: constitui uma das forças da natureza causa eficiente de uma quantidade infinita de fenômenos até agora incompreensíveis ou mal explicados e que encontram explicação racional só no espiritismo (KARDEC, apud Fiori, 2003, p. 22-29).

Como em Aristóteles, do motor imóvel e da causa primeira, presentes também em São Tomás de Aquino, o espiritismo atribui a Deus a inteligência suprema responsável pela ordenação do universo. A Jesus, consideram como a referência moral e o espírito mais evoluído passado na terra.
Não há altares, cultos, sacerdotes ou rituais espíritas. Prega-se o amor ao próximo e a Deus, a caridade e o progresso contínuo do espírito humano. De acordo com Heerdt, Besen e Coppi (2005), para o espiritismo as almas foram todas criadas em condição de igualdade, “Deus criou todos os espíritos simples e ignorantes (KARDEC apud Carvalho,1999)”, mas caminham ao bem ou ao mal, devido a sua liberdade de escolha. É mediante as sucessivas encarnações que elas se purificam dos pecados e alcançam a perfeição. Isso se dá num processo de esforço pessoal para a reparação dos erros cometidos em vidas passadas. Isso já afirmara Kardec: “fora da caridade não há salvação”.
Allan Kardec determinou ainda leis morais para o seguimento espírita. Segundo ele “a moral é a regra de bem proceder, de distinguir o bem do mal. Funda-se na observância da lei de Deus. O Homem procede bem, quando tudo faz pelo bem de todos, porque então cumpre a lei de Deus” (KARDEC apud Carvalho, 1999, p. 64).
É pela retidão no agir que haverá a progressão dos espíritos. Estes, segundo Carvalho (1999), estão escalonados no espiritismo na seguinte ordem (do 10º ao 1º): Espíritos impuros; levianos; pseudossábios; neutros; batedores e perturbadores; benévolos; sábios; de sabedoria; superiores; espíritos puros. A cada encarnação o espírito espia de algumas falhas e purifica-se progressivamente.
Para os espíritas a diferença efetiva entre os vivos e os mortos é a presença do corpo físico, isso justifica o processo: encarnação – desencarnação – reencarnação. O homem espírita divide-se em três partes como escreveu o próprio Kardec:
O homem tem duas naturezas, pelo corpo participa da natureza dos animais, da qual tem os instintos; pela alma participa da natureza dos espíritos. O perespírito, que liga juntamente o corpo e o espírito, é uma espécie de invólucro semimaterial. Depois da morte que é a destruição do invólucro mais grosseiro, o espírito conserva o segundo que lhe serve de corpo etéreo, invisível para nós no estado normal, mas que pode tornar-se em determinadas circunstâncias visível e também tangível, como acontece nos fenômenos de aparições (KARDEC apud Fiori, 2003, p. 23).

A mediação entre os espíritos encarnados e desencarnados no espiritismo é feita pelos médiuns, ou seja, “todo aquele que sente num grau qualquer a influência dos espíritos” (KARDEC apud Carvalho, 1999, p. 57). De acordo com Heerdt, Besen e Coppi (2005), a comunicação pode acontecer por psicografia ou incorporação, Carvalho (1999) acrescenta ainda as mesas girantes, os fenômenos de transporte, as manifestações visuais, a pneumatografia, a tipologia e a pneumatofonia.

2 – EXPOSIÇÃO DO CRISTIANISMO

De acordo com Santidrian (1996), cristianismo é a religião dos que crêem que Jesus Cristo é o filho de Deus, morto e ressuscitado, que veio anunciar aos homens a boa nova da salvação. Fundamenta-se nas palavras, nos gestos e na vida de um homem-Deus, reconhecido como “caminho, verdade e vida”.
Sendo a vida de Jesus o marco zero de nossa era, pode-se considerar o cristianismo como uma religião de praticamente dois mil anos. Iniciou-se durante a vida terrena de Jesus, sua atuação profética, morte, ressurreição e ascensão, com Ele próprio e com as pessoas que o acompanhava que formaram depois outras pequenas comunidades cristãs, para a escuta e a celebração da memória de Cristo. Ao longo desses mais de 20 séculos o cristianismo não representou apenas aspectos religiosos, mas exerceu grande influência cultural, social, econômica e política.
No seguimento das primeiras comunidades cristãs, ainda presentes no Oriente Médio, ou recém adentradas na Europa, como a comunidade dos Filipenses, desenvolveu-se a Igreja que se tornou universal, conhecida em todo o mundo, e depois as igrejas. É a tentativa de experimentar a Cristo na vida comunitária, fazendo do cristianismo vida e história.
Embora monoteísta, como o judaísmo e o islamismo, no cristianismo segue-se a uma pessoa, Jesus (presente no Pai e no Espírito Santo), e não a um livro, sendo, portanto, muito mais que uma doutrina ou filosofia, é um seguimento na fé e na entrega a Cristo, Palavra do Pai para os homens. A revelação cristã, que também é para a Salvação, não vem diretamente da Lei e nem do Profeta, mas do próprio filho de Deus encarnado.
São os livros sagrados do cristianismo divididos em dois testamentos, primeiro e segundo, que juntos compõem a bíblia. O primeiro narra a história do povo de Israel e o segundo a vida e o ensinamento de Jesus e a organização das primeiras comunidades.
Praticamente o cristianismo se encerra em duas grandes vertentes: catolicismo (romano e ortodoxo) e protestantismo. Historicamente, a Igreja Católica descende diretamente de Cristo e dos apóstolos. Em 1054 a Igreja Ortodoxa, oriental-grega, sediada em Constantinopla, separou-se da Igreja Romana, criando duas vertentes cristãs. Depois, em 1517, Lutero inaugura a Reforma Protestante, criando-se o Luteranismo e em 1537, João Calvino cria o Calvinismo, sendo estas duas as pioneiras do protestantismo.
O grande mandamento cristão (tanto para católicos, ortodoxos e protestantes) é o amor: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, disse Jesus. Ele pregou o amor em todas as circunstâncias, voltando sempre para a pessoa do próximo, mesmo que isso implicasse na quebra da Lei. Segundo Heerdt, Besen e Coppi (2005), a atividade de Jesus consistiu no anúncio do reino de Deus:
O reino é o projeto do Pai: fazer do mundo uma família de filhos e irmãos, um lugar para todos se sentirem bem, uma humanidade liberta de toda a opressão e reconciliada com o próximo, com a natureza, consigo mesma e com Deus (HEERDT, BESEN E COPPI, 2005, p. 103).

Esse reino tem seu início no meio da humanidade e não está preso a uma classe de nascidos ou a um povo escolhido num lugar e espaço. Seu diferencial é a vida abundante: “Eu vim para que todos tenham vida (Jo 10,10)”. O reino não é uma simples doutrina, ideologia, é a aceitação da pessoa de Jesus que leva a uma prática, uma vida.
A adesão da pessoa a mensagem de Jesus é o passo para a vida plena: “Quem vive e crê em mim jamais morrerá (Jo 11, 26)”. A salvação cristã está na ressurreição; pela ressurreição de Cristo, o cristão tem a graça de ressurgir com Ele, como lembrou o apóstolo Paulo ao Tessalonissenses (1 Tes 4, 13-14) ao dizer que se acreditamos que Cristo ressuscitou, também nós seremos ressuscitados por Deus aos morrermos unidos a Cristo.
O anúncio do Reino propagou-se quando, após a ascensão de Jesus, os discípulos receberam o Espírito Santo, que os encorajou na missão. No entanto, Pai, Filho e Espírito Santo, constituição da trindade, um só Deus em três pessoas distintas, sempre existiram e se revelaram ao longo da história. A trindade mostra que Deus é a comunidade mais perfeita de todas. A fé cristã se professa em nome da trindade e foi em seu nome que se desenvolveram as comunidades cristãs.

3 – DIÁLOGO ENTRE ESPIRITISMO E CRISTIANISMO

Uma grande oposição se faz entre o espiritismo e o cristianismo, principalmente no que se refere à Igreja Católica. Porém, Carvalho (1999) considera que há três pontos comuns entre cristãos e espíritas, sendo eles: a fé em um único Deus, a sobrevivência do espírito e a prática da caridade, no entanto, considera que ao se aprofundar os conceitos, há, mesmo dentro desses pontos, uma enorme divergência doutrinária.
Em dezembro de 2001, O Jornal de Opinião publicou um artigo de Evaldo Assunção intitulado “Espiritismo e Cristianismo: entendendo as diferenças”, que lançava pontos discordantes de um artigo de Umberto Ferreira, com o título “Espiritismo é uma doutrina cristã”, anteriormente publicado noutro jornal da de Belo Horizonte, o qual também foi consultado, via internet.
Assunção (2001) parte da afirmação de Ferreira (2009) de que a doutrina espírita possui tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso (ou moral):
Fala que em seu aspecto científico segue estudos conduzidos com rigorosa metodologia científica, no aspecto filosófico aborda questões que preocupam o homem desde que este começou a pensar e, no aspecto religioso é doutrina eminentemente ética, fundamentada nos ensinamentos de Cristo (ASSUNÇÃO, 2001, p. 12).

De acordo com Ferreira (2009), negar que o espiritismo tenha uma base cristã é demonstrar desconhecê-lo. Para isso se baseia em O livro dos Espíritos, de Allan Kardec, que fundamenta a doutrina espírita, indicando Jesus como guia e modelo para o homem, pois é o “Caminho, a Verdade e a Vida”. Baseia-se ainda no Evangelho segundo o Espiritismo, também de Allan Kardec, que trata especificamente do aspecto religioso e é todo desenvolvido a partir dos ensinamentos de Cristo, citando mais de 400 versículos dos quatro evangelhos.
Dessas citações bíblicas e da forma como se fez a interpretação delas surge uma oposição entre cristianismo e espiritismo ainda mais acirrada. A leitura fundamentalista dos textos, praticada pelos espíritas, confronta-se com a exegese bíblica e com a tradição teológica cristã, cavando, como escreveu Assunção (2001), um abismo intransponível de divergência doutrinária.
Um dos grandes conflitos está ligado à pessoa de Jesus. Para o cristianismo Ele é verdadeiramente Deus e redentor da humanidade, enquanto para o espiritismo, é um mestre espiritualmente muito elevado, porém não é Deus e de nada valeu a sua morte e ressurreição para a redenção da humanidade. Para eles, a redenção das culpas tem caráter pessoal, a salvação se dá pelo esforço exclusivo de cada pessoa, em sucessivas reencarnações. Já para os cristãos, a falta da redenção trazida por Cristo, misteriosamente processada através de sua morte na cruz e ressurreição no terceiro dia, privaria a humanidade de se libertar das amarras de suas imperfeições.
A resposta cristã, de acordo com Kloppenburg (1957), assinala que Kardec apesar de atacar sem conhecer a doutrina cristã sobre a natureza de Jesus, supondo que, para os cristãos, Cristo não fosse verdadeiro homem, mas apenas um composto de corpo humano e espírito divino. Suposição essa equivocada, rezando a doutrina cristã a verdade do ser divino (igual a Deus) e do ser humano (igual aos demais) de Jesus, com corpo e alma humana e não apenas um corpo fluídico e aparente.
A presença do mistério na doutrina cristã também representa ponto de divergência. A partir de Mateus 10, 26 que diz: “Não há nada de oculto que não venha ser revelado”, os espíritas esperam pela razão, ciência e lógica dar um sentido claro a todas as coisas. De acordo com Lepicier (1951), eles não atribuem aos milagres de Jesus efeitos divinos, mas os consideram obras do poder psíquico de médium de Jesus, operando conjuntamente aos apóstolos. Estes também seriam dotados de extraordinárias qualidades sensitivas, formando com ele, quando de mãos dadas, um círculo psíquico da maior potencialidade. A literatura bíblica não parece contemplar essa prática entre Jesus e seus discípulos, os “milagres” ou “fenômenos” de Jesus foram sempre realizados com muita simplicidade, naturalidade e dignidade, em qualquer lugar, dia e hora, sem muita escolha e preparação.
Ainda com relação aos mistérios, Kloppenburg (1957) cita um trecho de O livro dos médiuns, de Kardec, que diz:
Não admitais, portanto, senão o que seja, aos vossos olhos, de manifesta evidência. Desde que uma opinião nova venha ser expendida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom senso reprovarem (KARDEC apud Kloppenburg, 1957, p. 22).

No entanto, sabe-se que a própria origem da vida permanece sob mistério, assim como é mistério a existência de Deus na trindade. Contudo, embora mistério, a trindade apresenta-se no cristianismo como realidade manifestada. Por exemplo, no batismo de Jesus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são notados quando Deus envia o seu Espírito e se ouve do céu a voz que chama Jesus de filho amado, a trindade se faz presente. Mas esse mistério, e para a Igreja Católica, dogma, é ignorado por Allan Kardec. Leon Denis, também teórico do espiritismo justifica a trindade como o resultado das paixões e dos interesses materiais que entraram em jogo no mundo cristão, permitindo por essa concepção fazer de Jesus um Deus. Para ele, a Igreja teria inventado a trindade, o que atenta ferozmente contra o cristianismo.
Conforme já citado, embora espiritismo e cristianismo concordem quanto à prática da caridade, no desenvolver das duas doutrinas há divergências naquilo que se pode considerar a razão de praticá-la.
A caridade espírita baseia-se em Mateus 7, 12, que diz: “Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles, porque esta é a Lei e os profetas”. De acordo com Heerdt, Besen e Coppi (2005), ser caridoso significa agir em benefício do semelhante no dia-a-dia, sendo essa prática necessária à evolução do espírito que, amando o próximo, ao longo de vidas sucessivas, se torna justo e chega à perfeição.
A máxima espírita é: Fora da caridade não há salvação. Apesar de a caridade ser importante no cristianismo, Cristo disse: “Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado” (Mc 16, 16). Ou seja, não basta apenas a caridade para a salvação, mas a fé lhe é primordial. O importante é distinguir filantropia (característica da caridade espírita) de caridade cristã. É sem sentido a prática do bem apenas pela prática, como o é assim também a sua realização tendo em vista um ideal pessoal, mesmo que seja a expiação das culpas na busca da perfeição. A caridade cristã é marcada pelo amor ao próximo na alegria e na gratuidade, sabendo que a salvação é atributo da fé e a caridade, uma consequência inevitável desta.
Muitos outros são os pontos de divergência entre as duas religiões, principalmente numa série de outras negações dos espíritas com relação ao cristianismo: negação do milagre, da revelação, da existência de um Deus pessoal, da liberdade de Deus, da criação ex nihil, da criação da alma e do corpo humano assim como da união substancial entre ambos, da existência de anjos, de demônios, do pecado original, da graça, do perdão dos pecados, do valor da vida contemplativa e ascética, da eficácia do batismo, da presença eucarística, da indissolubilidade do matrimônio, da existência do purgatório, da existência do céu, do inferno e do juízo final.
Além dessas todas, parece importante enfatizar, a título de fechamento decisivo das divergências entre as religiões abordadas, primeiro a questão da comunicação com os mortos e, por fim, a afirmação do espiritismo acerca da reencarnação em contraposição a crença cristã na ressurreição.
De acordo com Fiori (2003), o espiritismo tem como verdade a probabilidade de que os vivos possam se comunicar com as almas dos mortos, conforme cita: “Pode-se evocar todos os espíritos... em qualquer tempo em que tenham vivido... com comunicações escritas ou verbais, conselhos ou esclarecimentos sobre o além-túmulo” (KARDEC apud Fiori, 2003, p. 71). Sobrinho (2002) afirma que no episódio da transfiguração de Jesus, em que Ele conversava com Moisés e Elias, houve uma comunicação com os mortos. No entanto, assevera Fiori (2003) que em razão da falta do corpo material, os mortos não podem comunicar-se sensivelmente com os vivos e nem os vivos com os mortos.
O Documento Lumem Gentium da Igreja, no número 49 diz, no entanto, que “a união dos que estão na terra, com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo, de maneira nenhuma se interrompe, pelo contrário, segundo a fé constante da Igreja, reforça-se pela comunicação dos bens espirituais”, incentivando à oração pelos falecidos, sendo ela o portal da comunhão espiritual realmente subsistente entre as almas dos falecidos e aqueles que ainda peregrinam na terra.
Com relação ao paradoxo ressurreição cristã e reencarnação espírita, Kloppenburg (1957) afirma ser essa a causa da negação da maior parte da doutrina cristã por parte dos espíritas, girando em torno desse ponto todo o sistema doutrinário do espiritismo. A frase escrita no momento erguido ao lado do túmulo de Kardec sintetiza a questão: “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sempre: tal é a lei” (Kloppenburg, 1957, p. 135). Essa doutrina consiste, pois, em afirmar que o individuo não nasceu ou viveu uma só vez sobre a terra, mas que o mesmo ser já tenha vivido muitas vezes no passado e muitas vezes ainda terá que se passar por semelhantes vidas, em corpos diferentes, progredindo e aperfeiçoando-se sempre.
No Evangelho segundo o espiritismo, Kardec quer evidenciar que Cristo ensinou a pluralidade das existências corporais dizendo que “a reencarnação fazia parte dos dogmas dos Judeus, sob o nome de ressurreição” (Kardec apud Kloppenburg, 1957, p. 46), justificando isso com a afirmação de Jesus sobre João Batista como o Elias que era para vir, assim como com o diálogo de Jesus com Nicodemos, no qual Jesus afirma que aquele que não nascer de novo não entrará no reino dos céus. Assim, para Kardec, negar a reencarnação é negar as palavras de Cristo.
Kardec sistematiza então, segundo Kloppenburg (1957), cinco teses sobre a inspiração cristã da reencarnação: 1) a reencarnação fazia parte dos dogmas judeus; 2) a palavra ressurreição é apenas outro termo para ressurreição; 3) em sua maioria, as máximas do evangelho são ininteligíveis sem o princípio da reencarnação; 4) João era a reencarnação do profeta Elias; 5) Jesus ensinou a reencarnação e negá-la é negar as palavras de Cristo.
No entanto, a doutrina cristã não aceita a hipótese da reencarnação e argumenta, com palavras do próprio Cristo, a negação a ela. Nota-se a preocupação de Jesus em preparar os seus para a hora da morte, do juízo, da prestação de contas. Observa-se isso na parábola do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31), nela tanto o pobre como o rico morrem e ficam separados por um abismo. Se Jesus concordasse com a reencarnação teria se preocupado em mencionar a volta do rico para outras vidas, ou mesmo para falar aos irmãos.
Também na crucifixão (Lc 23, 39,43), quando Jesus está entre os ladrões e Dimas, arrependido, confessa sua fé e recebe de Jesus a certeza da salvação, nota-se o caráter redentor de Jesus. Ele não o consola dando-lhe expectativas de vidas futuras para a expiação de seus crimes, pelo contrário, afirma-lhe a vitória com Ele. Assim também, na passagem das virgens prudentes (Mt 25, 1-13) afirma a necessidade de conversão diante do possível perecimento.
A oposição cristã à reencarnação afirma a ressurreição, o Catecismo da Igreja Católica, número 997 diz: “O que é ressuscitar?”, a fé cristã espera a nova união das almas dos falecidos aos seus corpos glorificados, através da onipotência de Deus, que restituirá a vida incorruptível aos corpos, unindo-os às almas, pela virtude da ressurreição de Cristo, associada à parusia, que é o “último dia” (Cat. Igreja Católica, nº 1001, p. 282).
No cristianismo, os cristãos se unem a Cristo pelo batismo, participando assim realmente na vida celeste de Cristo ressuscitado, permanecendo, segundo São Paulo (Cl 3, 3), escondidos com Cristo, em Deus. A vida em Cristo é eterna: “Quem vive em mim jamais morrerá” (Jo 11, 26). A redenção trazida por Cristo justificou definitivamente a vida humana; a eternidade, seja no céu ou no inferno, é para todos, com uma única possibilidade de salvação: a fé e suas consequências, praticadas ao longo da existência terrena.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de tantas diferenças doutrinárias, conforme se apresentou, na prática a relação entre cristãos e espíritas é mais próxima do que parece. Há, de fato, um grande número de “crispíritas”, ou seja, cristãos com crenças espíritas ou espíritas com crenças cristãs.
É importante, a partir do conhecimento das duas doutrinas, saber discernir o que é próprio de cada uma, observar essas particularidades no dia-a-dia e, nas conversas e atitudes em que se perceber a fusão de ambas, saber orientar para a diferenciação, mostrando pontos e contrapontos, pequenas semelhanças e enormes discrepâncias que há entre elas.
No entanto, o abismo que há entre a doutrina cristã e a espírita deve permanecer enquanto doutrina e a separação de cristãos e espíritas deve ater-se às diferenças religiosas. Caminha-se hoje (diferente de outros tempos, como aqueles dos escritos de Frei Boaventura Kloppenburg – 1957 – várias vezes citados, que condenam efusivamente não só o espiritismo, mas também os espíritas), para um momento em que se faz urgente a valorização da tolerância religiosa posta em face do crescimento do chamado indiferentismo religioso.
Assim, embora não se possa de modo algum afirmar o espiritismo como uma doutrina cristã (mesmo que cite alguns versículos bíblicos ou até mesmo siga algum ensinamento cristão, da mesma forma que seguir preceitos dados por Buda, não determina adesão de ninguém ao budismo), há de se reconhecer, em vias gerais, as três semelhanças entre espiritismo e cristianismo, mas, mais importante que reconhecer isso, é reconhecer que em ambas as religiões os adeptos sabem-se filhos de Deus e, por isso, devem ser tratados com alguma fraternidade, mesmo que a Igreja os considere hereges.
Afinal, não há razões para se diminuir uma ou outra religião. Nenhuma delas pode ser desrespeitada. A busca do ser humano é pela justificação, para o que – não só cristianismo e espiritismo – mas todas, oferecem meios. O importante é conseguir que os adeptos se encontrem dentro dela, amparados pela fé e pela doutrina e sejam-lhe fiéis, não fiquem indecisos e dediquem-se à verdade de cada uma, pois só ela é que libertará.


Cláudio Geraldo da Silva




REFERÊNCIAS

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