quinta-feira, 17 de junho de 2010

O que é filosofia, em Luc Ferry


O primeiro capítulo da obra Aprender a Viver do filósofo francês Luc Ferry, publicada no Brasil pela editora Objetiva, introduz, ao modo de seu autor, um convite para, não somente a leitura da obra, como também um aprofundamento nas entranhas da filosofia.
Todo o desenvolvimento do capítulo relaciona-se ao que, de fato, é a filosofia. Inicia contrariando as tradicionais formulações que a restringem a mero exercício da reflexão crítica autônoma e interrogativa ou, à apenas, rigoroso pensamento, ou de modo ainda mais crucial, à simples teoria da argumentação. No entanto, lembra que todos estes conceitos estão presentes na contemporaneidade e de algum modo representam a importância da filosofia nela, embora não representem unicamente a atividade filosófica, uma vez que há vários seguimentos que fazem uso desses métodos e não são filosóficos.
Para Ferry, a questão inicial da filosofia não é outra senão a interrogação que o homem faz-se acerca da sua limitada presença espaço-temporal no mundo. Para demonstrar isso, ressalta o modo como as reflexões religiosas do homem partem do mesmo princípio, afirmando que a busca do homem pela religião parte da percepção de seu ser no tempo finito, fazendo-lhe buscar a salvação, ou seja, a garantia de poder extrapolar a temporalidade e manter-se vivo.
As religiões, para responder a tal anseio humano, prometem a salvação. Aquele que acreditar, mesmo que morra, viverá, pois a morte é apenas uma passagem para este, pois representa, na sua potencialidade, a união com o Deus que salva.
A filosofia, segundo Ferry, é própria daqueles que não creem. A estes, o problema da morte ainda permanece, pois não estão ligados às promessas que as religiões fazem, uma vez que, tanto não acreditam na veracidade delas, como enxergam a morte de um modo muito mais amplo. Nisso remete a ideia de Epicuro, para quem a morte não se fazia presente durante a vida, resumindo a morte apenas ao momento biológico do fim da vida, o que para Ferry é absurdo.
Morto é, assim, tudo aquilo que seja irreversível. Desse modo, estão mortas as férias da infância, os amigos com quem se perderam completamente os vínculos, as casas e escolas por onde já se passou, as conversas que se teve etc. Havendo, portanto, inúmeras formas de morte dentro da existência. Essas também atormentam o homem e, por esse medo que produzem, impedem-no de viver livremente, com alegria, amor e generosidade.
É nessa libertação do medo das mortes que religião e filosofia vão divergir fundamentalmente. Ambas querem salvar o homem, mas passam por métodos que se opõem. Enquanto o crente, humilde, espera a graça de Deus para sua salvação, o filósofo, arrogante e vaidoso, tentando conhecer o mundo para se conhecer, busca-a na própria lucidez. Ou seja, se na religião a salvação vem de fora, na filosofia é alcançada pelo próprio ser. Assim dizer que a filosofia atua na separação entre homem e Deus.
A grande questão é afirmar que, essencialmente, a filosofia deve atéia. Dizer a existência de uma filosofia de cunho religioso é negar a sua função primeira, pois certamente haverá algum momento em que a liberdade do pensamento será sacrificada, tendo a razão adulta que dar lugar à fé infantil, que põe fim ao espírito crítico. Não obstante, afirmar-se-á também que filosofia é a busca da salvação sem Deus, preferindo a lucidez ao conforto.
Consciente de sua temporalidade o homem relaciona-se com ela. O filósofo sabe que não é turista no tempo, mas tem nele seu papel e importância. A reflexão a esse respeito delineia três etapas da ação filosófica: a teoria, a moral ou ética e a sabedoria.
A teoria supõe a ideia do campo, do conhecimento do mundo onde se desenvolve a existência, saber tanto suas aparências, quanto seus estudos mais científicos e históricos, assim como os meios usados para conhecê-los. A moral ou ética está além deste campo, liga-se ao harmônico relacionamento interpessoal. A observação das duas primeiras encontra sentido na terceira, quando se poderá viver sabiamente, feliz e livre dos medos.
É nessa perspectiva que Luc Ferry introduz o conteúdo de sua obra Aprender a viver. Quer nos capítulos seguintes perpassar momentos da história da filosofia, apresentando-a como essa real forma de viver desprendido dos medos e angústias que afastam o homem do seu momento presente e amarram-no à nostalgia do passado ou a esperança do futuro. Sendo muito mais arte de respostas que de perguntas.
É claro que de algum modo as colocações do autor são pertinentes. A filosofia, ao longo de sua existência sempre prezou a questão de o homem poder avaliar por si mesmo a veracidade das coisas. Por sinal, a verdade sempre foi motivo de inquietação na filosofia, levando personalidades importantes a desenvolverem pensamentos consideráveis a seu respeito como, por exemplo, Agostinho, para quem a verdade já aparecia como a consequência da experiência interior do homem e culminava em Deus, e Descartes que a concebera pela dúvida e experimentação.
Não diferentemente, está a inquietação com relação à prova da existência de Deus, sobre a qual, muitíssimos filósofos discutiram e discutem sem consenso. Se por um lado existem aqueles que atribuem caráter de transcendência à filosofia, há muitos outros que a imanentizam totalmente, desprendendo e criticando a relação de homem e Deus.
Tem sentido dizer que o homem busca na religião as respostas que por si só, na sua ingenuidade, não é capaz de encontrar. A consciência da sua finitude o faz temer o amanhã e, para amenizar a sensação de insegurança, atribue a um ser superior as aspirações que são propriamente humanas. Paralelamente à finitude está a insignificância que a religião confere ao homem, sendo Deus o todo bom e o homem o nada, o negativo total.
A análise estritamente racional desses fatos pode levar à real consideração de que o homem basta a si próprio, independendo de Deus e sua graça. A filosofia que leva o homem a se salvar das diversas formas de morte é a expressão dessa análise. O homem arraigado à imanência encontra nela todas as premissas e conclusões necessárias ao seu sentido de vida. Isso pode dar-lhe a sensação de um ser supremo em si mesmo, de grandeza e importância, não só ser autoconsciente, mas também autossuficiente.
Por outro lado, corre-se o risco de, como o Feuerbach que disse que o homem é o Deus do homem, atribuir valor de transcendência ao homem e, de certa forma, transferir a ele as mesmas qualidades que, embora considere humanas, atribui a Deus. Pode acontecer que desse ateísmo materialista desemboque certa mística, ou, mais racionalmente, uma filosofia idealista que não contribua para a real concretização da vivência sábia que o autor propõe como marca do filósofo.
Além disso, há pontos na obra que embora tentem distanciar filosofia e religião, não conseguem estabelecer tal diferenciação. A questão da morte, por exemplo, a religião não a considera apenas como o fim da vida biológica. Há, também na religião, o reconhecimento de muitas formas de morte, mesmo quando se diz morte para o pecado e isto tem um sentido na transcendência, esses pecados para os quais se morre também estão na linha do irreversível, do nunca mais. Ou seja, a religião, como a filosofia, coloca o ser em contato com suas diversas mortes. E, no caso da morte biológica, a filosofia também não consegue uma explicação racionalmente convincente porque não há respostas para tanto. Aqui a religião pode parecer mais útil ao homem que a filosofia, já que ela, do seu modo, satisfaz o anseio e ameniza a angústia humana.
Assim também observar que se é tão clara a divisão de limites entre razão e fé, como explicar a existência de uma linha da filosofia chamada filosofia da religião? E como explicar, ainda, a temática religiosa que orientou a discussão filosófica não só na modernidade com Descartes, Pascal e Kant, adentrando-se na contemporaneidade com Hegel, Feuerbach, Popper, Marx, Freud, Nietzsche e, por que não dizer até mesmo o próprio Luc Ferry, mas veio também das questões da antiguidade, de Platão e Aristóteles e da Idade Média, principalmente de Agostinho e Tomás de Aquino? Se a preocupação com o problema Deus é tão presente, é contraditório dizer que Deus seja alheio à filosofia.
No entanto, a ideia de Ferry encontra respaldo na liberdade do pensamento. O pensar livre marca a filosofia, não só por dizer o que se quer, mas principalmente por possibilitar a difusão da reflexão acerca do assunto. É importante notar o respeito manifesto para com os crentes, o que manifesta a convicção que tem de sua própria filosofia principalmente no que concerne à sua aplicação à vida de sociedade e à relação interpessoal.
De tudo, a filosofia de Luc Ferry ajuda na compreensão do homem e seu mundo, considerando as diferentes necessidades que a sociedade tem e pelas quais teme o que lhe é desconhecido. Para tanto, a filosofia em seu sentido estrito apresentado por Ferry, pode realmente ser útil.